O caráter moral da descrição do submundo na mitologia greco-romana

O seguinte texto apresenta duas descrições do Inferno mitológico: uma, a da obra Odisseia, do poeta Homero; a outra, pertencente à obra “Eneida”, de Virgílio. Nosso objetivo neste trabalho é apresentar as distinções entre ambas as descrições da maneira mais clara e direta.

O Inferno, na Odisseia, é descrito como um lugar onde as almas dos mortos acham-se cobertas por nuvens e brumas espessas; entre os mortos, há moços, moças, velhos em males há muito experientes e virgens tenras que apenas pouco antes descobriram a existência do mal. Veem-se também muitos guerreiros mortos em campos de batalha, que ostentam manchas de sangue em suas armas.

São mencionadas, no livro IV da Odisseia, versos 561-569, as “campinas do Elísio”, onde a existência decorre feliz para todos os homens. Lá, o inverno não é longo, não cai neve, e não chove o ano todo, mas o sopro contínuo de Zéfiro refresca os homens a mando do Oceano.

No livro XI, nos versos 576-600, são descritas também as penas das almas condenadas ao Tártaro; são mencionadas as figuras de Tício, condenado a ter seu fígado devorado por abutres; Tântalo, condenado a passar sede e fome; e Sísifo, condenado a arrastar uma pedra gigante.

Homero, não descreve com muitos detalhes a geografia do Hades, mas sugere uma divisão, principalmente destacando que almas nobres e merecedoras iriam para um campo iluminado e de aparência agradável, enquanto as demais permaneceriam em lugar lúgubre.

Eneias, Sibila e Caronte na travessia do Aqueronte por Giuseppe Maria Crespi.

Já Virgílio, em sua obra “Eneida”, provê detalhes mais ricos acerca da geografia do submundo. Na Eneida, quando o herói Eneias chega ao “vestíbulo”, a primeira coisa que vê é a moradia dos Remorsos, do pálido Medo, das Enfermidades de aspecto tristonho, da Velhice inamável, da Fome má conselheira, da Pobreza aviltante, das Mazelas, visões de horror, seguidas da Morte, dos irmãos gêmeos do Sono, dos insuportáveis Trabalhos, dos gozos proibidos da mente, da Guerra letal do outro lado; nos tálamos férreos, as Fúrias irreprimíveis; e a negra Discórdia, que penteava os cabelos de cobras vivas enfeitando-os com laços de sangue. No centro, erguia-se um olmeiro de braços anosos como Sonhos vãos pendurados nas inúmeras folhas. Há, na entrada do submundo, outros monstros como, por exemplo, Cilas, Briareu, os Centauros, a Hidra de Lerna, a Quimera, as Górgonas, as Harpias e Gerião, que não passavam de seres incorpóreos.

Eneias chega ao rio Aqueronte, que as almas, levadas pelo barqueiro Caronte, atravessam para chegar ao reino dos mortos. Nas Às margens do rio, uma turba de fantasmas procura por seus entes queridos, antes deles falecidos, que se aproxima de Caronte para a travessia, mas somente os mortos que haviam sido sepultados eram elegíveis, enquanto os demais deveriam esperar cem anos, pelo transporte. As almas condenadas por supostos crimes são levadas até “Minos”, juiz dos Infernos, que os inquire sobre sua vida e seus crimes.

Eneias e a Sibila no Mundo Inferior, ca 1604 por Jan the Elder Brueghel.

Há, no Inferno de Eneida, um lugar chamado de “Campos Lugentes”, onde permanecem as almas que morreram por amor malfadado; nesses campos, espalham-se ocultas num bosque de mirto, cortado por infinitas veredas, as vítimas tristes da dura peste, de cujos os golpes nem mesmo na morte se livram. Eneias encontra nesse lugar: Pócris, Fedra e Erifile; Pasífaa e Evadne; seguidas de Laodâmia e Ceneu. Por último, viu a rainha Dido, que por ele morreu louca de amor por ele.

O caminho divide-se em dois: o da direita leva ao palácio do nobre Plutão, rumo ao Elísio; o da esquerda, leva ao Tártaro, onde os maldosos recebem suas as penas de pelas ações em vida. Após passar próximo aos dois caminhos, o herói Eneias avista, no sopé de uma rocha, a sinistra, descomunal fortaleza cintada por tríplice muro, que o sombrio Flagetonte circunda com chamas do Inferno.

Visão de Eneias nos Campos Elísios por Sebastiano Conca, 1735-1740.

As descrições do Inferno na literatura clássica sempre possuem um fundo moral, que induz o leitor a desejar ser como o herói merecedor do Elísio, e não como das almas condenadas ao Tártaro. Todo herói, tal como Eneias ou Odisseu, vivenciam verdadeira transformação, uma “anábase”, palavra que significa “ascensão”, após a “catábase”, que significa “descida”. Na literatura, a catábase é usada para insinuar a sua “morte” e, a anábase, o renascer de um novo homem. Eneias, por exemplo, quando encontra seu pai Anquises nos Campos Elísios, recebe a revelação de sua futura progênie: os grandes heróis romanos. Nesse momento, Eneias percebe que a sua missão é maior do que si mesmo. A ele foi incumbida a tarefa de fundar uma nova Troia, a região que originaria, mais tarde, a cidade de Alba Longa, onde, séculos depois, nasceria Rômulo, o fundador de Roma. Odisseu, por outro lado, ao fazer sua catábase, mata em si mesmo o “eu aventureiro, errante pelos mares”, para adquirir as virtudes necessárias ao homem de família que retorna ao lar.

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