Enquanto o Livro I da Eneida descreve várias cenas e locais, o Livro II apresenta poucos cenários, mas um intenso enredo psicológico e forte sentido alegórico. Por esse motivo, chamamos a este segundo livro de “Intenso”, em contraste com o primeiro, batizado como “Distenso”.
É, justamente, na obra de Virgílio, e não na de Homero, que lemos a descrição da queda de Troia. No livro II, Eneias narra tudo que se sucedeu em Troia: sua fuga, os perigos e desafios que enfrentaram, até o desembarque dos troianos em Cartago.
Logo nos primeiros versos, Eneias demonstra que não lhe será fácil a narração de todos os fatos, pois a dor da lembrança ainda é latente:
“… Pela guerra alquebrados dos ‘Fados repulso’,
em tantos anos ocorridos, os cabos da guerra da Grécia
com a ajuda da arte de Palas construíram na praia um cavalo”
Os “Fados”, nesse sentido, são a personificação do próprio Destino, ou seja, “perseguidos pelo Destino”. A expressão “cabos de guerra da Grécia” refere-se aos chefes gregos guerreiros, enquanto a “arte de Palas” faz referência ao Canto VIII da “Odisseia”, v. 493, no qual Homero explica que o cavalo foi construído por Epeu com a ajuda de Palas Atena (Minerva).
O motivo alegado pelos troianos para o imenso cavalo era o regresso dos gregos e término da guerra. O cavalo, aqui, também é um símbolo “escatológico”, ou seja, que trata dos últimos eventos da história do mundo ou do destino final do gênero humano – neste caso, a destruição de Troia. Nos versos 28 e 29, Eneias descreve que os acampamentos dos gregos estavam agora desertos, e insinua que lá também se encontrava “Aquiles”. Mas como estaria ele “lá”, se os acampamentos estavam desertos? Provavelmente, apenas seu corpo sepulto. Nem Homero, nem Virgílio, descrevem propriamente a morte de Aquiles. Virgílio, mais adiante, no livro II, esclarece apenas que ele já havia morrido.
Eneias prossegue o relato dizendo que as entranhas do monstro escondiam valorosos guerreiros gregos, e que o restante dos inimigos escondera sua frota atrás da ilha de Tênedo, logo em frente à praia troiana. No verso 30, na expressão “surtos na terra, os navios”, “surtos” é um termo náutico que indicava que os navios não estavam mais ancorados na praia.
A favor do Cavalo de Troia, Timetes – cujo nome vem de “thumos”, que significa coração, paixão, confusão – aconselha levá-lo para dentro das muralhas de Troia, com o apoio do falso grego Sinão. Já contrários ao cavalo, com a razão mais iluminada, surgem Capis, Laocoonte e Cassandra, que advertem do perigo. “Capis” vem do latim “caput”, simbolizando a cabeça, a razão. O sacerdote Laocoonte, que se encontrava em “sobranceira almedina” – ou seja, um lugar alto e fortificado, também aqui simbolizando uma razão superior – também advertia os gregos do perigo que representava o cavalo:
“Não confieis no cavalo, troianos!
Seja o que for, temo os dânaos, até quando trazem presentes!
Eis a origem da expressão “presente de grego”. Em seguida, Laooconte lançou um dardo contra o ventre do cavalo.
O livro II é repleto de alegorias que oscilam antitéticas entre “dia e noite”, “luz e cegueira”, “razão iluminada e irracionalidade”, enfatizando que a razão da queda de Troia foi justamente a cegueira dos troianos quanto aos indícios dos perigos, sua recusa em seguir os conselhos dos mais sábios e iluminados.
Nos versos 69 a 194, ocorre o discurso do enganoso Sinão, grego que diz ter sido abandonado pelos seus em sacrifício mas, que na verdade, ali se encontrava para incutir nos troianos a ideia de que o cavalo era um presente de reparação aos deuses e que os gregos realmente haviam retornado para casa.
No verso 90, o poeta escreve “… a inveja de Ulisses, o falso”, característica principal que Virgílio atribui a Ulisses. Esta também é a única versão conhecida por Dante, que não dominava o grego e, portanto, não lera os versos homéricos, motivo pelo qual inclui Ulisses no Inferno em sua obra “Divina Comédia”.
Sinão narra que fora escolhido para ser sacrificado, de modo que aplacasse a ira dos deuses contra os gregos. Os troianos, então, comovidos a má sorte de Sinão, lhe oferecem abrigo e hospitalidade. Sinão continua sua narração, dizendo que o motivo pelo qual os gregos construíram o cavalo era para redimir a afronta dos gregos ao “tentarem roubar o sagrado Paládio” – estátua da deusa Palas Atena (Minerva) – matando os sentinelas na entrada do templo. A palavra “Tritônia”, no verso 171, refere-se à deusa Minerva, que nascera nas águas do lago Tritão, na Líbia.
Em seguida, descreve-se a sorte de Laocoonte que se encontrava no altar de Netuno, a imolar um touro em sacrifício, quando lá foi sacrificado, junto com seus filhinhos, por duas grandes serpentes saídas da ilha de Tênedo rumo à praia. Do verso 210 ao 212, o poeta usa de aliteração para simular o som sibilante da serpente.
Os troianos, assustados com o acontecido, acreditaram que os deuses puniram Laooconte por ter atirado um dardo no cavalo, e por esse motivo, deveriam aceitar o presente. Neste momento, Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, que recebera de Apolo o dom da profecia, se opõe e tenta avisá-los, mas não é ouvida. Cassandra, apesar de possuir o dom de prever o futuro, tinha péssima oratória, como castigo imposto por Apolo por haver-se recusado a ele entregar-se.
Os troianos festejam e inebriam-se com o vinho. Sinão, quando todos os gregos dormiam, abriu o ventre do monstro, libertando os guerreiros gregos, que abrem as portas para a entrada dos outros guerreiros, que tomam de assalto a cidade.
As chamas já tomavam conta da cidade. Eneias relata que, neste instante, viu a “sombra de Heitor”, que o avisa que deveria fugir de Troia para salvar-se, levando consigo os Penates. Esta passagem é considerada um prenúncio da Era Cristã: a piedade de Eneias.
Eneias viu-se dividido entre lutar até a morte por Troia, entregando-se ao heroísmo glorioso, de lutar bravamente, mesmo sabendo que a batalha estava perdida, e morrer pela pátria, e seguir o conselho de Heitor e fugir da cidade.
Logo adiante, descreve-se a cena em que a virgem Cassandra é arrastada pelos cabelos por Ajax (guerreiro grego). Os troianos que acompanhavam Eneias ficaram horrorizados. Corebo lança-se contra ele, mas o telhado do templo desaba sobre os troianos. Tentam ainda mais uma vez lutar contra os gregos mas, por estarem em menor número, os seguidores de Eneias recuam.
Nos versos 484 a 553, Eneias narra o sacrifício de Príamo. O rei, já idoso, vestiu-se como moço guerreiro para lutar contra os invasores. Hécuba, sua esposa o encontra assim vestido ao lado do altar. Ela, com suas noras, o convence a permanecer rezando próximo ao altar. Neste momento, Pirro, filho de Aquiles atira dardos acertando um dos filhinhos pequenos de Príamo. Este corre ensanguentado aos braços do pai e da mãe, e ali morre. Príamo, então em represálias coléricas pede aos deuses que punam Pirro, e que ele não era digno de seu pai Aquiles, o qual havia feito um acordo honroso com Príamo. Pirro, em seguida, impiedosamente, mata Príamo no altar, de modo semelhante ao sacrifício de Laocoonte.
Nos versos 567 a 621, Eneias diz ter reconhecido Helena e sentido um desejo de vingança, mas foi impedido por Vênus. A deusa o convence a fugir e procurar sua família. Ao chegar ao palácio de Anquises, encontra o pai que, inicialmente, se nega a fugir, e diz não se preocupar em ficar insepulto, caso os inimigos o encontrem. Em seguida, encontra Creúsa e seu filhinho Ascânio.
Invocando sua mãe, a deusa Vênus, para que os proteja dos dardos inimigos, nesse momento a cabeça de Ascânio é envolta de uma chama luminosa. Anquises, o avô, percebe que esse é prenúncio dos deuses, e aceita fugir de Troia com Eneias e seus seguidores.
Um trovão corta os céus, e uma estrela sagrada brilhante aparece no céu noturno apontando para o monte Ida. Anquises entende-a como um sinal do caminho a ser seguido e todos partem. Esta descrição da estrela também é interpretada pelos primeiros estudiosos cristãos como um prenúncio da Estrela de Belém.
Ao fugir, Eneias carrega o pai nos ombros e este segura os Penates, pois Eneias estava com as mãos ensanguentadas, não sendo digno de fazê-lo. Eneias segura na mão o filhinho e é seguido por Creúsa na fuga. Virgílio, alegoricamente, indica que Anquises representa a tradição, o passado, que Eneias carrega consigo, enquanto Ascânio simboliza o futuro e, Creúsa, o presente.
“Tu, caro pai, leva os pátrios Penates e objetos do culto.
Desta matança terrível havendo eu saído de pouco,
não poderei tocar neles enquanto nas águas de um rio
não me lavar”
Os versos destacados relacionam-se diretamente à fala de Heitor no canto VI de Ilíada, versos 264-267.
Na fuga, Creúsa fica para trás e se perde na multidão. Eneias percebe o fato apenas mais tarde, tenta voltar para procurar a esposa e encontra apenas seu vulto em enorme estatura, que o avisa que já não se encontrava mais viva, reforça que o destino de Eneias era outro e que inclusive, encontraria um novo reino e teria uma nova esposa régia.