O poeta Virgílio nasceu na cidade de Mântua em 70 a.C., tendo vivido o período da grande transição da República para o Império Romano. Em sua juventude, Virgílio escreveu as obras “Bucólicas” e “Geórgicas”. Estudou matemática, medicina e literatura, quando absorveu as grandes obras de Homero e as tragédias de Eurípedes. Cultivou amizade com os poetas Horácio, Lúcio Vario Rufo, Plotio Tucca, com o patrono das letras Caio Mecenas e com o Imperador Augusto. A pedido de Augusto, dedicou-se a escrever o grandioso épico “Eneida”. Faleceu no ano de 19 a.C., sem completar a revisão final da obra. Foram, precisamente, seus amigos Lúcio Vario Rufo e Plotio Tucca que procederam à revisão, sem quase nada modificar do original, e a publicaram após a morte de Virgílio.
“Eneida” é um poema épico iniciado in media res, composto em versos hexâmetros dactílicos, dividido em doze livros, que retrata os valores fundacionais do povo romano. Os primeiros seis livros tratam da “fuga”, imitando assim os versos homéricos da Odisseia; os seis últimos livros tratam da “guerra”, imitando a Ilíada.
O livro I, do qual trataremos especificamente neste artigo, pode ser dividido em três grandes partes: (1) proêmio, (2) a viagem de Eneias e (3) o desembarque em Cartago.
No proêmio, encontramos a invocação e a proposição da epopeia. O tema central apresentado por Virgílio é a fundação de uma cidade espiritual, ou seja, a história espiritual que originou o povo romano.
“As armas canto e o varão que fugindo das plagas de Troia
por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro
e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito
tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno,
guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade
e o Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina,
dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados.
Musa! recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada;
por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro
tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?
Cabe tão fero rancor no imo peito dos deuses eternos?”
Já no proêmio o autor clarifica suas fontes literárias, indicando-nos sua absorção da grandeza das obras homéricas. No primeiro verso, “as armas” têm por referência a guerra, ou seja, a obra de Ilíada; e “varão”, neste caso, representado por Eneias, homem nobre, sugerindo semelhança à nobreza de Odisseu, grande herói da Odisseia. No segundo verso, ao personificar o “Destino”, destaca as grandes dificuldades por qual passou o herói Eneias para fundar a “nova Troia”, aquela que daria início à grande civilização romana. Virgílio recorre também ao recurso da prolepse, ou seja, uma antecipação no tempo, ao referir-se à fundação da cidade de Lavínio, cidade que seria apenas criada após o casamento com Lavínia, filha do rei Latino.
O verso “A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno” relaciona-se diretamente com a proposição “varão” (Eneias), situação similar à enfrentado por Ulisses em sua viagem de retorno a Ítaca, quando sofreu as iras de Netuno. O trecho “guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade” relaciona-se com a proposição “armas”, sugerindo que Eneias enfrentaria guerras para conseguir fundar a “Cidade”, que neste sentido, se refere ao mesmo tempo à cidade de Lavínio, quanto as cidades fundadas por seus descendentes diretos: Alba Longa, por seu filho “Ascânio”, e a futura “Roma”, por Rômulo. É também, de forma alegórica, uma referência à fundação de uma “cidade espiritual”, aquela que definiria o caráter do povo romano.
Nos versos: “e o Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados“, o vate explica que Enéias, por ser um herói piedoso, trouxe consigo de Troia os deuses dos lares, para que ele pudesse, junto com seus companheiros, fundar um novo lar para o povo troiano na Itália. Virgílio traça uma relação direta desde o povo primitivo de Alba Longa até a “Rômulo e Remo”, fundadores da cidade de Roma, que levantariam os muros ao redor de Roma.
Os últimos quatro versos do proêmio tratam da invocação às “Musas”. As Musas são as filhas de Zeus e Memória, às quais recorrem os poetas quando precisam narrar algo maior que a própria capacidade humana.
Dos versos 13 a 33, o poeta nos descreve a origem de Cartago, cidade protegida por Juno, incluindo a profecia da futura rivalidade entre Cartago e Roma, ou seja, menção direta às futuras guerras púnicas. Ele menciona também a origem da hostilidade de Juno contra os troianos, ao mencionar que fora preterida no julgamento de Páris.
Na segunda parte do livro I – versos 34 a 156 – o poeta narra a tempestade enfrentada pelos troianos antes de desembarcar em Cartago. Juno decide ir ao reino de Éolo, pedir seu auxílio, para destruir as naves dos troianos. Nos versos 55 a 57, para descrever a caverna onde estariam presos os ventos, Virgílio usa de belíssima aliteração, a qual foi assim traduzida por Carlos Alberto Nunes:
“Bramam os ventos em torno à prisão, e a montanha retumba
com a turbulência dos presos. Sentando na rocha altaneira
Éolo se acha com o cetro, seus brios aplaca e tempera.”
Juno suplica pelo auxílio de Éolo, prometendo a ele a mais bela ninfa como esposa, Deiopeia. É interessante observar comparar esse recurso de Juno à sua promessa a Páris, caso fosse escolhida, por ele, a mais bela entre todas as deusas.
A deusa da Discórdia não fora convidada a uma festividade e, por vingança, enviou um pomo de ouro que dizia pertencer “à mais bela” entre todas as deusas presentes. Ali se encontravam Juno, Vênus e Atena. Júpiter, declarando-se impedido de escolher, ordenou que fosse o jovem Páris o juiz. Juno lhe prometera, caso escolhida, um reino; Atena, o dom da sabedoria; e Vênus, a mais bela mortal. Páris escolhe, então, Vênus como a mais bela.
Ao prometer a Éolo uma “bela ninfa”, Juno utilizou de artifício semelhante ao usado pela vitoriosa Vênus. Éolo aceita a proposta, liberta os ventos, dando início a uma terrível tempestade. Nos versos 85 a 87, novamente, o poeta usa de aliteração para sugerir o som e movimento das ondas.
Os versos 124 a 156 narram a intervenção de Netuno, o qual estranha a tempestade e investiga sua origem, já que os mares eram de seu domínio. Logo descobre a interferência de Éolo a pedido da rancorosa Juno. Netuno expulsa os ventos e promete vingar-se da ousadia. Dos versos 148 a 156, Virgílio usa de um belo recurso estilístico ao dotar os elementos da natureza de características humanas: refere-se aos ventos de Éolo como “povinho sem brio” e, a Netuno, como “um varão de aparência tranquila”.
A terceira parte do livro I pode ser assim dividida: (1) diálogo entre Júpiter e Vênus; (2) Vênus aparece para Eneias na figura de uma caçadora e o conduz até o templo de Juno; (3) Eneias vê as cenas da guerra de Troia e, comovido, finalmente se revela a Dido; (4) Eneias manda trazer Ascânio. Vênus interfere e envia Cupido (na aparência de Ascânio) para enfeitiçar Dido; (5) a descrição do banquete.
Vênus se queixa a Júpiter, e questiona os prolongamento das aflições dos troianos e, principalmente, de seu filho Eneias, pois o destino já previra que eles dariam origem ao povo romano. Júpiter acalma Vênus, confirmando o futuro de Enéias: o herói enfrentaria ainda guerras terríveis – referência ao livro VIII da “Eneida” –, antes de reinar sobre o Lácio; que seu filho, Ascânio, reinaria por trinta anos seguidos a capital de Lavínio, antes de fundar Alba Longa, onde seus descendentes se manteriam no comando por mais trezentos anos; e que haveria de chegar o tempo em que a família dos Júlios, os romanos descendentes de Eneias, dominariam os Gregos. Menciona posteriormente, a “Pax Romana”, período no qual viviam o Imperador Augusto e o poeta Virgílio.
Em seguida, Júpiter envia Mercúrio para preparar a chegada dos troianos a Cartago, de forma que fossem bem acolhidos. Nota-se, especialmente no verso 259, referência à “Apoteose de Eneias”, cujo relato poderemos conferir de forma mais detalhada na obra “Metamorfose”, de Ovídio. “César de Troia”, no verso 286, é referência a Otaviano Augusto, amigo do poeta Virgílio. Já “rico de espólios do Oriente”, no verso 290, refere-se à luta de Otaviano contra Marco Antônio e Cleópatra.
Na sequência, Vênus aparece em forma de “caçadora” para Eneias, que desconfia de sua origem divina. Vênus explica a Eneias que ele se encontrava nas terras da rainha Dido, cuja origem lhe relata, bem como suas semelhanças com o próprio destino de Eneias, pois ela também fugira com seu povo e fundado um novo lar em Cartago.
Nos versos 402-409, Eneias reconhece sua progenitora divina. Vênus conduz Eneias ao Templo de Juno, mas o envolve em névoa, para que invisível ficasse. No verso 444, “a cabeça de um belo cavalo” revela os primeiros indícios de perigo aos troianos mencionados pelo poeta, já que “cavalos” eram um símbolo da futura inimizade entre os troianos que fundariam o povo romano e os cartagineses. Ao mesmo tempo, “cavalo” também é uma lembrança constante da queda de Troia. Tais indícios, ingenuamente o herói não percebe.
Nos versos 466 a 493, é apresentado ao leitor um resumo dos acontecimentos da Guerra de Troia. Virgílio retrata a rainha Dido como bela viúva casta, nobre, caçadora, laboriosa e protetora do seu povo. Dido julga e reina em Cartago. Eneias, ao rever as imagens desses acontecimentos retratadas no templo, se emociona e finalmente se revela a Dido (versos 494 a 630). Dido, ao saber que o nobre Eneias está em sua presença, logo se mostra hospitaleira e conduz o troiano a seu palácio.
Nos versos 644 a 722, Eneias manda trazer das naus seu filho Ascânio, assim como belos presentes para ofertar à rainha Dido. Vênus, a Citereia, interfere envolvendo a criança em mágico sono, enviando, em seu lugar, Cupido na aparência de Ascânio, com a ordem de enfeitiçar de amor a rainha Dido por Eneias. Vênus tinha ciência do plano de Juno, de criar uma aliança por casamento entre Dido e Eneias, a fim de que este não cumprisse a profecia de fundar uma nova Troia. Mas Vênus pretendia vencer Juno em seu próprio território pois, ao enfeitiçar Dido, despertaria nela uma paixão desordenada pelo herói troiano. Ao apaixonar-se por Eneias, de caçadora, Dido vira caça de Cupido.
Dos versos 723 a 757 inicia-se a descrição do banquete oferecido por Dido aos troianos. Nos últimos quatro versos, Dido pede que Enéias lhe narre, de forma cronológica, as artimanhas dos gregos, e a infelicidade de seus companheiros de vagar sem descanso, por mais de sete anos, até o desembarque em Cartago.