O Livro II da Eneida anuncia a destruição de Troia e indica presságios e augúrios de origem divina para a fundação de uma nova Troia. O Livro III é a continuação da narração de Eneias à rainha Dido. Em comparação com o canto anterior, é um canto distenso, com muitos cenários, mas reduzida ênfase psicológica. Virgílio, neste canto, procura relacionar características da Eneida com a Odisseia. De forma geral, poderíamos dividir as cenas segundo o relato geográfico onde os troianos aportaram até sua chegada à Sicília: (1) Trácia, (2) Delos, (3) Creta, (4) Estrófades, (5) Áccio, (6) Epiro (Butroto), (7) Castrum Minervae, (8) país dos Ciclopes, (9) Déprano.
Os troianos se refugiaram próximos à cidade de Antrando, ao pé do Monte Ida, e lá construíram navios, seguindo então para a Trácia. Ao chegar à praia, Eneias faz um sacrifício à mãe Dioneia e demais divindades. Um monte havia ali perto, para onde Eneias se dirige e encontra moitas com cerejeiras silvestres e mirto de ramos trançados. Ao tentar arrancar alguns ramos, a planta começa a verter sangue e uma voz sobe das entranhas da terra. Era Polidoro, um dos filhos de Príamo, que fora assassinado por Licurgo, rei da Trácia. Polidoro aconselha os troianos a deixar aquele lugar amaldiçoado. Os versos (24-30) também foram fonte de inspiração para Dante no Canto XIII do Inferno, em que relata evento semelhante. Antes de partir, os troianos prestam as honras funéreas a Polidoro:
“A Polidoro, primeiro, prestamos as honras funéreas.
Monte elevado de terra erigimos, altares aos Manes,
ínfulas de cor azul para o luto, e ciprestes escuros;
ao derredor, as ilíadas, soltos os belos cabelos,
como de praxe; crateras de tépido leite vertemos,
sangue das vítimas sacrificadas. Na tumba encerramos
a alma do amigo, e em voz alta lhe demos o adeus derradeiro.”
Os “Manes”, eram os Penates, deuses dos lares, almas dos nobres ancestrais dos troianos. “Ínfulas” de cor azul eram faixas usadas em rituais fúnebres. As “Ilíadas” se referem às mulheres troianas que participaram do funeral de Polidoro. A pedido do pai, seguem para o templo de Apolo na ilha de Delos, a fim de ali consultarem os oráculos.
“Ilha graciosa se eleva no meio do mar, dedicada
à mãe das belas Nereidas, ao divo Netuno de Egeu.
Antes, errava por costas e praias, até que o potente
Asseteador a fixou entre Giaro aprazível e Mícono,
para que, imóvel ficando, aprendesse a enfrentar as tormentas.
Desembarcados ali, recebeu no seu porto tranquilo
os navegantes cansados. Saudamos o burgo de Apolo.”
“Ilha graciosa” refere-se à ilha de Delos, onde se encontravam os oráculos do templo de Apolo. A “mãe das belas Nereidas” é Dóris. As “nereidas” são divindades marinhas filhas de Nereu (Netuno de Egeu). “Asseteador” refere-se a Apolo, deus do arco. “Gearo” e “Mícono” são ilhas que circundam Delos.
“Morada própria, Timbreu, nos concede, socorro aos feridos,
às gerações pouso estável. Em nós, outra Pérgamo salva,
restos roubados aos gregos, a cólera imana de Aquiles”.
Nos versos acima, “Timbreu” é um epíteto, uma alcunha, que se dá a Apolo. “Outra Pérgamo” refere-se à prometida nova Troia. “Cólera imana de Aquiles” faz referência à proposição da Ilíada. “Imana” tem o sentido de “cruel”.
Eneias é aconselhado a buscar a “mãe primitiva”. O oráculo afirma que ali Eneias fundaria outra Troia e que seus descendentes dominariam o mundo de polo a polo. Anquises, pai de Eneias, interpreta este lugar como sendo a ilha de Creta (versos 103-114). Nestes mesmos versos, “Teucro” refere-se a um ancestral dos troianos; “paragens reteias”, a “paragens troianas”, já que remete à cidade de Reteu onde fica o promontório da Tróade. “Ílio” refere-se à cidade de Troia e, “Pérgamo”, a uma cidade vizinha. “Cíbele” ou “Cibele” era uma divindade frígia. “Mistérios do Ideu” são rituais do monte Ida, onde Cibele era cultuada.
Ao desembarcarem em Creta, logo os troianos põem-se a construir as bases da nova Pérgamo. Por infelicidade, foram acometidos de uma peste. Anquises então, pede novamente que se consultem os oráculos de Febo Apolo mas, desta vez, na ilha de Siracusa. À noite, Eneias é visitado em sonho pelos sacros Penates:
“Tudo que Apolo frecheiro queria dizer-te, ora manda
que te anunciemos. Para isso enviou-nos à tua morada,
Nós, a Dardânia incendiada, os trabalhos das armas contigo
participamos e o risco enfrentamos das ondas revoltas.
Para isso mesmo, teus netos poremos acima dos astros
e à sua pátria daremos o império do mundo.”
Nos dois últimos versos acima, os Penates vaticinam a grandeza dos descendentes de Eneias e do futuro Império Romano. Na sequência, eles esclarecem que a “mãe primitiva” refere-se a Dárdano, que teve origem na região da Hespéria, indicando, assim, o caminho para fundar a nova Troia. Os penates assim concluem:
“Vamos, acorda! E ao pai velho transmite sem mora a notícia
alvissareira que tudo confirma: dirija-se a Córito,
na bela Ausônia, pois Jove e nega as campinas de Creta.”
“Ausônia” refere-se à Itália; “Córito” é uma cidade etrusca, atual Cortona.
Eneias prontamente obedece e corre até Anquises, que confirma os dois “troncos genealógicos”. Todos se aprontam e lançam-se ao mar tenebroso. Por três dias, sem distinguir se era dia, em terrível tempestade, chegam às ilhas Estrófadas, no Mar Jônio. Essas ilhas, segundo Virgílio, eram morada das funestas Hárpias. Dante também descreve as Hárpias de forma semelhante no Canto XIII do Inferno. Virgílio assim as descreve:
“cara de virgem em corpo de pássaro, fétido fluxo
lhes sai do ventre; as mãos têm como garras, o rosto denota
fome canina”.
Os troianos logo avistam bela campina com manadas de bois e rebanhos de cabras. Matam alguns novilhos, ofertam-nos aos deuses e põem-se a comer. Neste momento, as Hárpias furiosas confrontam os troianos:
“Mas de repente dos montes nos baixam, com voo estridente
de um bater de asas medonho, as Harpias, que tudo desmancham,
as iguarias nos roubam, com seu repulsivo contato
tudo corrompem, fedor espalhando ao redor, e grasnidos.”
As Harpias toda a ceia emporcalham. Os troianos investem contra os monstros alados. Celeno, uma das Harpias, irada, profetiza (versos 247-257):
“Guerras? Depois de matardes meus bois e vistosas ovelhas,
progênie de Laomedonte? E, por cima, quereis expulsar-nos,
as inocentes Harpias, do reino dos seus genitores?
Ouvir, então o que tenho a dizer-vos, sem nada ocultar-vos.
Tudo o que Apolo aprendeu com o mais forte dos deuses, e logo
me revelou, eu das Fúrias a mais poderosa, vos conto.
Vossos anseios à Itália vos levam. Com prósperos ventos
heis de alcançar por sem dúvida a Itália e adentrar os seus portos.
Mas, antes mesmo de vossa cidade, querida dos deuses
de muros altos cingirdes, haveis de sofrer dura fome
por esse crime: forçados sereis a roer até as mesas.”
No trecho acima, Virgílio assimila as Harpias às Fúrias. Celeno afirma que chegarão até os portos da Itália, mas que, antes de conseguir fundar a nova Troia, passariam por fome terrível e, por isso, seriam forçados a roer até as mesas. Este último verso faz referência ao Livro VII de Eneida.
Os troianos voltam à navegação pelos mares e passam próximos a Ítaca, amaldiçoando a pátria de Ulisses, e finalmente aportam nas praias do Áccio (verso 280). De forma sutil, Virgílio faz uma homenagem a Otaviano Augusto e sua batalha contra Marco Antônio e Cleópatra. No verso 281 o poeta faz também uma etiologia, indicando a origem do costume romano dos jogos desportivos.
Os troianos seguem então para Butroto (Epiro) e lá encontram Heleno, filho de Príamo, que havia contraído matrimônio com Andrômaca, viúva de Heitor. Eneias encontra Andrômaca a oferecer votos solenes e presentes fúnebres a Heitor sobre seu “túmulo inane”, ou seja, “túmulo vazio”. Andrômaca havia se casado com Heleno, mas continuava fiel à memória de Heitor (versos 295-305). Estes versos também fazem referência ao canto VI da Ilíada.
Na sequência, Eneias indaga a Andrômaca o seu fado. Ela explica como Pirro a havia dado como escrava a seu outro escravo, Heleno. E como, depois, Hermínome (filha de Helena e Menelau) que era noiva de Orestes, casou-se, porém, com Pirro, filho de Aquiles. E que Orestes, tomado pelas fúrias, assassinou o Neoptelamo próximo às aras, ou seja, foi sacrificado no altar. Heleno assume parte do território de Pirro, a que deu o nome de Caônia, homenagem a Cáone, um dos filhos de Príamo, e na cidade ergueu uma modesta nova Troia. Heleno também era sacerdote de Apolo e, por isso, Eneias a ele se dirige pedindo instrução dos oráculos.
“Filho da deusa, os auspícios mais altos me dão a certeza
de que amparado o mar fundo navegas. Assim seus desígnios
o pai dos deuses dispõe e sorteia. Essa é a ordem das coisas.
Pouco direi dentro o muito que fora preciso saberes,
para que os mares amigos e certos encontres nas tuas
divagações e consigas fundear num dos portos da Ausônia.
Pouco há de ser, pois as Parcas e Juno satúrnia mo impedem.
Para contar do começo, essa Itália almejada e tão perto,
e os vários portos que entrar imaginas, por serem vizinhos,
longos caminhos e mares impérvios de ti os separam.
Antes, teus remos terão de dobrar-se nas ondas trinácrias
e teus navios riscar as salgadas planícies da Ausônia,
do Inferno os lagos passar e também a ilha ceia de Circe,
para que alfim a cidade consigas fundar no chão firme.”
“Parcas” são as divindades que fiam o destino inexorável do qual nem os deuses podem escapar. Neste caso, o oráculo não podia revelar muitos detalhes, para não impedir que o destino do herói se cumprisse. “Ondas trinácrias” referem-se às “ondas sicilianas”, ou seja, os troianos passariam pela Sicília, e depois aos “lagos infernais” e na “ilha ceia de Circe”, que faz referência a Cumas, descrita no canto VI de Eneida, quando o herói desce aos infernos.
O oráculo também lhe dá sinais para que reconheça o local onde se fundaria a nova Troia:
“Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome,
e deparares deitada na sombra de bela azinheira
uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma
cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego:
esse será o local da cidade, o descanso almejado.
Não te preocupes por causa da fome de roer até as mesas.”
A previsão de encontrar uma alva porca e seus trinta leitões também será narrada no Livro VIII de Eneida e é mencionada na obra do historiador Tito Lívio. Aqui, “Alva” remete à cidade que será fundada por Ascânio, Alba Longa, trinta anos após seu filho governar Lavínio. A “fome de roer até as mesas” é narrada no Livro VIII, sendo esse o sinal de que os troianos encontraram a terra prometida na qual fundariam a nova Troia. O oráculo também adverte aos troianos para, quando estivessem na Sicília, passassem longe da região onde se encontravam as monstruosas Cila e Caribde. Afirma também que, antes de tudo, os troianos deveriam prestar culto à deusa Juno e que, em terra firme, procurassem a cidade de Cumas, os bosques de Averno e a profetiza Sibila. Antes de partirem os troianos, Andrômaca lhes entrega valiosos presentes. Os troianos soltam as velas, costeando de perto os “Penhascos Ceráunios”, ou seja, as montanhas de Épiro, observando no céu a constelação de Orião. Mais adiante, aportam no santuário da deusa Minerva, na cidade de “Castrum Minervae”, atual cidade de Castro.
“Como primeiro presságio vi quatro cavalos pascendo
num prado próximo, brancos de neve, soberba aparência.
E o pai Anquises: ‘A guerra anuncias, ó terra bendita!
Guerra os cavalos inculcam; para isso é que os brutos se prestam.”
Em seguida, como indicado por Heleno, prestam culto a Minerva. Após as honrarias, partem novamente os barcos troianos, avistando ao longe o golfo de Tarento, a bela cidade de Hércules e o templo de Juno Lacínia. Mais adiante, avista-se o Etna na bela praia conhecida como Trinácria. Também reconhecem, à distância, Caríbide, de que Heleno advertiu que mantivessem distância.
“Bramidos fortes do mar enraivado à distância escutam,
vozes das penhas batidas das ondas em luta perene.
Ferve o mar fundo, as areias sem pausa a girar turbilhonam.
Meu pai Anquises, então: ‘Certamente esta é aquela Caribde,
estas as rochas, o escolho terrível que Heleno predisse.”
Ao pôr do sol, chegam às praias dos feros Ciclopes. Segundo Virgílio, a terra dos Ciclopes ficava próxima ao Etna. Lá, encontram a figura lastimável de Aquemênides, grego que fora deixado para trás, nessa região, por Ulisses. Narra como haviam conseguido fugir da caverna do Ciclope, logo após furar-lhe o olho. Estes versos remetem também à “Odisseia”, de Homero. Aquemênides avisa que a região ainda era habitada por outros Ciclopes, por isso era perigoso continuarem ali.
Continuando a narração, Eneias descreve a paisagem avistada da Sicília, seus rios, sua geografia, finalmente chegam a cidade de Déprano, situada na Sicília. Eneias relata a Dido, então, o quão doloroso, foi para ele a morte de Anquises.
“Déprano aqui me acolheu no seu porto e funestas ribeiras.
Nesse lugar, açoitado por tantas e tais tempestades,
perdi meu pai, sim, Anquises, meu único amparo e consolo
na adversidade. Sozinho deixaste-me, pai extremoso,
salvo de tantos perigos, sem norte na via escabrosa.”
O herói conclui, que ao sair de Déprano, um dos deuses furiosos os haviam jogado na praia de Cartago.