Escólio ao Livro IV de Eneida

Os quatro primeiros livros de Eneida poderiam também ser nomeados de “Os livros das provações do herói”. Ou seja, esses livros descrevem o rito da transformação que prepara Eneias para fundar a nova Troia. As provações se revelam, principalmente, no livro I – tempestade provocada por Éolo a mando de Juno – e, no livro III – as errâncias do herói até chegar a Déprano, na ilha da Sicília. O livro IV trata do amor funesto de Dido e Eneias, e, de certa forma, também é uma preparação do herói para adquirir a firme força de vontade de cumprir o seu dever, renegando a si mesmo para cumprir a sua vocação.

Podemos, inicialmente, dividir o livro IV em três grandes partes:

  1. A dúbia mente de Dido;
  2. O ardil de Vênus; e
  3. A paixão de Dido.

Cada uma dessas partes pode ser subdividida em duas ou três partes, como veremos a seguir.

A seção sobre a “dúbia mente de Dido” pode ser dividida em
1.1. O estado emocional de Dido;
1.2. Conversa com Ana.

A seção 1.1. pode ser ilustrada pelos versos a seguir:

“Quanto à rainha, ferida de cega paixão desde muito,
nutre nas veias a chaga e no oculto braseiro se fina,
a revolver de contínuo na mente o valor do guerreiro,
a alta linhagem do herói; no imo peito gravadas conserva
suas palavras, o gesto. De tantos cuidados não dorme.” (v. 1-5)

Os versos acima são a descrição patológica da doença que acomete Dido – Virgílio descreve o amor de Dido por Eneias como uma doença.

Na sequência, Virgílio descreve a conversa de Dido com Ana, “unanimam” (v. 8-9), literalmente, “una alma”, ou, como traduziu Carlos Alberto Nunes, “alma gêmea”. Essa expressão denota que ambas dividiam a mesma alma, uma mesma consciência, simbolizando aqui a “mente dúbia” de Dido.

Aqui cabem duas interpretações: “Ana” poderia tanto ser a irmã de Dido, quanto simbolizar a sua consciência dividida. Como a única menção a essa “Ana” se dá no livro IV, parece-nos mais provável a segunda interpretação. Segue-se, então, a conversa entre Ana e Dido. Dido sente-se presa à fidelidade a Siqueu, relutando a ceder ao amor que lhe inspira o troiano. “Ana” enfatiza que a união com Eneias poderia ser vantajosa para o reino de Cartago, sempre rodeado de inimigos que o cobiçavam, uma racionalização da decisão de Dido. Na sequência, a rainha se mostra piedosa para com os deuses, não querendo macular o matrimônio contraído com Siqueu:

“Ana, confesso-o; depois de Siqueu me ter sido roubado,
meu caro esposo, e os Penates manchados de cruel fratricídio,
este, somente, os sentidos tocou-me e a vontade oscilante
venceu de todo. O calor sinto agora da chama primeira.
Antes, porém escancare-se a terra e no abismo eu mergulhe,
ou o padre sumo com um raio me atire no reino das sombras
pálidas, no Érebo logo eu baixando, até a noite profunda,
do que, pudor, eu violar-te e infringir teus preceitos sagrados.” (v. 20-27)

Ana – ou a sua mente dúbia? – logo faz um exórdio se mostrando bastante impiedosa quanto a honrar os deuses, afirmando que Dido não deveria se preocupar com os Manes, e que depois de tanto ter preterido vários pretendentes, deveria agora entregar seu amor a Eneias. Inflamada pelas palavras de Ana, Dido, então, oferece um sacrifício aos deuses para consultar as vísceras das vítimas e ler seus presságios. Dido, além de rainha, exerce o papel de sacerdotisa do reino.

Nos versos a seguir, outra evidência que Dido, de caçadora, tornou-se a caça de Cupido:

“Arde a rainha infeliz, vaga insana por toda a cidade,
sem rumo certo, tal como veadinha nos bosques de Creta
que o caçador transfixou com uma flecha, sem que ele consciência
então tivesse do fato…” (v.68-79)

Na segunda parte do livro, o poeta nos relata o Ardil de Vênus. Juno, ao ver a rainha atacada pela peste, dirige-se a Vênus e propõe um acordo pacificador: unir Dido em matrimônio com Eneias, para que o filho de Vênus pudesse reger o reino de Cartago. Em resposta, Vênus lhe diz:

“… Quem fora demente a esse ponto.
Para negar-te um pedido ou enfrentar-te no campo da luta?
Resta saber se a Fortuna estará também nisso de acordo.
Porém duvido que os Fados ou Jove concorde em reunirmos
numa cidade os de Tiro e os de Troia exilados de pouco,
nessa mistura de etnias distintas por ti sugerida.” (v. 107-112)

Ao propor esse acordo, a Satúrnia queria evitar que o destino de Eneias se cumprisse, que o herói fundasse a cidade e de seus descendentes, que nascesse aquele que traria a ruína futura a Cartago, numa referência às futuras Guerras Púnicas. Juno, a deusa do matrimônio, explica sua estratégia a Vênus, dizendo que Dido e Eneias se preparavam para uma caçada e, durante a qual ela enviaria uma tempestade, induzindo a rainha e o troiano a dela proteger-se numa caverna. Por juntos se abrigarem, isso os aproximaria para ali consumarem o himeneu. Vênus, ardilosamente finge concordar com a estratégia mas, na verdade, pretendia ganhar a batalha no campo de Juno, inflamando Dido de amor doentio.

“A própria Terra e depois Juno prônuba as juras confirmam,
crebros relâmpagos brilham e o éter esse inflama; conscientes
daquele enlace, ulularam nos picos mais altos as ninfas.
Esse, o primeiro dos dias letais, o princípio de todas
as desventuras de Dido. Do falso decoro não cuida;
furtivo amor não lhe chama; comporta-se como casada,
inocentar-se pensando da culpa com um rótulo falso.” (v.166-172)

Ou seja, Dido já se comportava com Eneias como se com ele casada fosse. Mas, neste momento, a “Fama”, cruel, divulga o acontecimento nas cidades próximas da Líbia. A “Fama” é descrita como a personificação das más-línguas, da fofoca.

“Monstro horrendíssimo, ingente, de plumas coberto, que escondem
olhos em número igual – maravilha! – sem pausa acordados,
línguas e bocas falantes e orelhas ao máximo alertas.” (v. 181-183)

Neste ínterim, Jarbas, um dos pretendentes renegados pela rainha, é inflamado pela “Fama” e revolta-se contra Dido, pondo-se a caminho de Cartago para tomar satisfações. Antes de partir, dirige preces a Jove:

“Júpiter onipotente, a quem libam nesta hora os maurúsios,
nos belos leitos deitados, os dons de Lieu, sempre gratos!
Reparas nisto? Dar-se-á, grande pai, que os teus raios agora
vibras inócuos, ou que teus relâmpagos aterrorantes,
por tantas nuvens ocultos, sem dano nenhum estrondeiam?
Essa mulher, aqui vinda sem rumo, comprou por vil preço
faixa de terra para uma cidade pequena, onde arasse
quanto quisesse; porém, repelindo as alianças propostas,
como o senhor de seus reinos a Eneias agora se prende.
E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos,
fronte cingida com mitra da Meônia, no mento enlaçada,
de perfumados cabelos, do rapto se goza. E quanto a isso,
dons imprestáveis te oferto, tua glória vazia eu cultivo?” (v. 206-218)

Nos versos acima, Jarbas compara Eneias a Páris, que roubou Helena e, assim, provocou a guerra de Troia. Descreve também os troianos como “somenos”, ou seja, “afeminados”, sem virilidade, pois, até este ponto, enquanto esteve em Cartago, Eneias parecia ter-se esquecido de sua missão: fundar a nova Troia.
Ao ouvir a súplica de Jarbas, Júpiter envia Mercúrio até Eneias para lembrar-lhe de que deveria cumprir o seu destino e partir o mais rapidamente rumo a Ausônia, pois, se não fosse, prejudicaria o destino de seu filho Ascânio. Mercúrio encontra Eneias a trabalhar na fundação de novas casas para os troianos.

“… Que fazes? As bases assentas possantes
da alta Cartago, com teu mulherengo pendor para as coisas,
da antiga pátria de todo esquecido e dos teus interesses?
O próprio rei inconteste dos numes, que a terra dirige
como lhe apraz e o alto céu, desde o Olimpo, me impôs a incumbência
de percorrer tanto espaço nas auras e dar-te um recado:
Em que te ocupas? Que tempo precioso esbanjado na Líbia!
Se não te move a ambição do provir prometido, a esperança
de algo fazer em louvor de ti mesmo, de teus ascendentes,
pensa em Ascânio menino, na idade mais bela de todas,
nas esperanças de Iulo, a quem deves os reinos da Itália,
os altos muros de Roma”. (v. 265-276)

No discurso do deus mensageiro temos o recurso de “antecipação do tempo”, assim como um “aviso” para que o herói abandonasse os prazeres do presente para cumprir sua missão de fundar a nova Troia. Eneias então, em segredo, pede que os seus companheiros preparem os navios para partirem o quanto antes. Dido suspeita, a própria “Fama” confirma seus receios e leva-lhe a notícia. Nos seguintes versos, o poeta revela que a rainha se encontrava com a razão entorpecida, embriagada de amor:

“Fora de si, excitada, percorre a cidade, em delírio,
estimulada tal como a bacante nas sacras orgias
do Citerão, trienais, ao ouvir os clamores de Baco,
durante a noite e segui-lo nas matas profundas do monte.” (v. 300-303)

Dido interroga Eneias, acusando de desonrá-la e que nada lhe restaria senão ser morta por Pigmalião ou levada cativa por Jarbas. Eneias responde que nunca teve intenção de prejudicá-la, mas que o Destino o impedia de viver o presente: primeiro, deveria cumprir sua vocação. Em certo sentido, essa passagem também é uma etiologia de um costume romano: os romanos vivem pelo amor ao dever.

Dido e Eneias por Pompeo Batoni (1708–1787).

Dido e Eneias por Pompeo Batoni (1708–1787).

“O mensageiro dos deuses da parte de Jove agorinha
mesmo me trouxe um recado pelo ar – por aqueles o juro,
Ascânio e Anquises; eu próprio o enxerguei quando o burgo adentrava
no resplendor; sua voz ainda soa-me aqui nos ouvidos.
Não venhas, pois agravar minha magoa – e a tua – com brigas.
Não busco a Itália por gosto.” (v. 331-361)

Dos versos 362 a 392, a rainha profere um discurso inflamado a Eneias, realçando a dureza do coração do Herói; irada, roga-lhe uma praga: ele pagaria o insulto com a morte e invocaria mil vezes o nome de Dido. Esse trecho é também uma etiologia das futuras guerras púnicas. O pio Eneias, conquanto desejasse acalmar-lhe os ânimos, não se esquece das ordens do nume e prepara os navios para zarpar. Desesperada, a rainha busca a irmã, na esperança que ela possa convencer Eneias a permanecer mais algum tempo em Cartago. Porém, Eneias não se abala com as preces, pois, segundo Virgílio, “os deuses lhe tapam as ouças amigas”.

“Foi quando Dido, a infeliz viu que os Fados contra ela se achavam;
pensou na morte, a luz bela do dia a angustia e deprime.
E para mais reforçar-lhe a intenção de privar-se da vida,
precisamente no instante de incenso queimar nos altares,
viu – pavoroso presságio! – anegrar-se nos vasos o leite
dos sacrifícios e em sangue estragado mudaram-se os vinhos.” (v. 450-455)

Na última parte do livro III, revela-se a paixão doentia de Dido. Dissimulada, dirige-se a Ana (v. 474-503) dizendo que havia encontrado um remédio para o seu sofrimento e solicita a Ana que acenda uma fogueira para que ela pudesse fazer um ritual, queimando as armas de Eneias.

“Mas a rainha, tão logo no pátio ao lar livre elevou-se
pira adequada, com achas de pinho e azinheira, decora
todo o recinto, com ramos funéreos, vistosas guirlandas.
No alto da pira o seu leito coloca, a roupagem, a espada,
e mais a efigie de Eneias; bem sabe o futuro que a espera.
Vários altares a pira rodeiam; a maga, os cabelos
soltos, evoca três vezes as cem divindades do Érebo,
o Caos, a tríplice Hécate, Diana também de três faces.
Líquido asperge, alegando ser água das fontes do Averno,
bem como o sumo violento de certas plantinhas lanudas,
com podadeiras de cobre cortadas em noite de lua.” (v. 504-514)

Érebo é o deus infernal da escuridão, assim como o local onde ele habita. Hécate é uma deusa feiticeira. Hécate, Diana e a Lua representam aqui a mesma divindade a reinar no Averno, na Terra e no Céu. Ao descrever Dido como “a maga”, Virgílio também faz uma referência cruzada com a imagem de Circe descrita na Odisseia.

Por um momento, Dido se acalma e se questiona se deveria aceitar casar-se com um dos pretendentes da Líbia, ou se deveria seguir os troianos em sua viagem. Resolve, então, que é melhor morrer transpassada pelo ferro (espada).

“Tu, cara irmã, tens a culpa de tudo; vencida das minhas
lágrimas, desta obsessão, ao inimigo sem fé me entregaste.
Ah! Não viver como as feras sem tálamos ricos, e livre
passar o tempo, sem nunca sentir essa cruel apertura!
Os juramentos e as cinzas quebrar de Siqueu bem-amado!” (v. 528-532)

A mente dúbia de Dido culpa o seu lado passional. Tálamos se refere aqui a casamentos.

Novamente, Mercúrio aparece ao herói e o alerta quanto ao perigo de permanecer mais tempo em Cartago, informando-o dos projetos calamitosos da rainha. Eneias prontamente obedece e manda soltar as amarras dos navios. Insana, Dido planeja matar todos os troianos, ver suas naus incendiadas e, se pudesse, serviria o próprio Ascânio como banquete a Eneias. Tamanha é a sua fome de vingança, expressa nestes versos:

“É o que vos peço; com o sangue vos lanço este apelo supremo.
Tírios! Vosso ódio infinito em seu filho e nos seus descendentes
extravasai! É o que esperam de vós minhas cinzas ardentes.
Nenhuma aliança jamais aproxime os dois povos imigos.
Há de nascer-me dos ossos quem possa vingar-me esta afronta
com ferro e fogo, quem limpe o meu nome com sangue dardânio.
Hoje, amanhã, no momento mais certo em que o acaso os ajunte,
a força houver, briguem praias com praias e as ondas entre elas,
armas de guerra por tudo, até os últimos netos com forças!” (v. 621-629)

Novamente, o vaticínio de Dido é uma referência às futuras Guerras Púnicas; novamente o poeta recorre ao efeito de “máquina do tempo”. “Nascer-me dos ossos” refere-se a Aníbal, que quase conquistou Roma, e a quem Virgílio transforma em descendente de Dido.

A morte de Dido por Sébastien Bourdon (1616–1671)

Nos versos 642 a 692, Virgílio relata o suicídio de Dido, que transpassa a espada de Eneias em seu próprio peito. Nos versos 693 a 705, Juno, se apieda de sua protegida, e envia Iris para ajudá-la a libertar a alma de seu corpo.

A complacência de Ovídio ao retratar Dido

A paixão de Dido por Eneias, assim como a morte de Dido, também é retratada na obra “Heroides”, de Ovídio. Na carta VII da obra, intitulada “Dido a Eneias”, o poeta utiliza o gênero elegíaco e epistolar, ao mesmo tempo em que inclui características do gênero épico. Ovídio descreve a rainha escrevendo uma carta logo após a fuga de Eneias de Cartago e pouco antes de cometer suicídio, remetendo diretamente, então, ao livro IV da Eneida.

VII
DIDO A ENEIAS

“Ouve, Eneias, o canto de Elisa que vai morrer.
As palavras que lês, lês nossas últimas.
Assim, quando os fados chamam, o pálido cisne,
abatido nas relvas úmidas, canta para as águas do Meandro.
[…]
Mas já que tenho perdido injustamente não só os atos, mas também a honra,
tanto o corpo como o espírito casto, é leve perder as palavras.
Contudo, estás decidido a ir e a abandonar a infeliz Dido,
e os mesmos ventos levarão as velas e a fidelidade? (v. 1-4; 7-10)

Os fados, nestes versos, se referem à personificação do destino. A imagem do cisne branco é particularmente importante aqui, porque, na Antiguidade, acreditava-se que o cisne branco era completamente mudo durante toda a sua vida, mas, um pouco antes de sua morte, cantava uma das mais belas canções já ouvidas. Dido, nesse sentido, seria como o “pálido cisne”, que entoaria sua canção em sua última carta a Eneias. A Dido de Ovídio, aparentemente, escreve a carta logo após a partida de Eneias e  antes de sua própria morte. “Leve perder as palavras”, parece indicar que ela sabia que a carta em si não seria lida por ele, mas que ainda assim, o ato de escrever era como uma penitência para ela mesma. A expressão “infeliz Dido” é também uma referência aos versos de Virgílio “Infelix Dido” (EN. I v. 749).

“Mesmo que encontres uma terra, quem entregará a ti esta que deve ser conquistada?
Quem dará a não conhecidos seus campos que devem ser oferecidos?
Resta outro amor para ti? Outra Dido deve ser possuída?
Enganaria ambas de novo? Outra fidelidade deve ser dada?
[…]
De que lugar terás uma esposa que te ame assim?
Sou abrasada de amor, como o enxofre estrangeiro da tocha encerada.
Tanto a noite quanto o dia traz de novo Eneias ao espírito.
Ele, e de quem eu quero abster-me, oxalá não seja louca,
certamente é agradável ao mal e insensível aos meus presentes.” (v. 17-20; 24-28)

Ambas as personagens retratadas, tanto por Virgílio quanto por Ovídio, destacam que, além de ser mais do que bem recebido, deram parte ativa a Eneias em seu reino, algo que ele não encontraria em nenhum outro lugar: para onde quer que o herói fosse, teria que batalhar para conquistar territórios e iniciar uma nova cidade. Eneias também é retratado como “enganador”, “infiel” e “insensível”.

“Ainda não odeio Eneias, embora deseje mal,
mas lamento o infiel e amo, lastimosa, o pior.
 […]
Ele está separado do gênio de sua mãe.
A pedra e os montes e os carvalhos naturais te geraram, nos altos
rochedos as feras cruéis te criaram,
[…]

a onda e o vento são mais justos do que o teu espírito.
Eu não sou tão importante (embora mereças, pérfido)
para que morras.
[…]

Vive, peço, assim é melhor que eu te perca do que a tua morte.
É preferível que tu sejas levado por causa de minha morte.” (v. 29-30; 36-38; 44-46; 63-64)

Eneias, em Virgílio é inflexível, comparado à dureza de um carvalho; tem suas “ouças tampadas” pelos deuses. A Dido de Ovídio lamenta a dureza do coração do herói, desejando que ele fosse exatamente o contrário: maleável como o mar mutável pelos ventos. Eneias é retratado como injusto; entretanto, enquanto em sua carta, Dido não se arrepende de ter salvado Eneias e dividido com ele o governo de seu reino, a Dido de Virgílio é vingativa e invoca as Fúrias infernais. A Dido de Virgílio deseja que ele tenha insucesso no seu empreendimento, na sua busca de uma nova Troia; deseja a sua morte. Já a Dido de Ovídio é incapaz de lhe desejar morte ou sofrimento.

Imediatamente os perjúrios apresentam-se à língua falsa,
e a frígia Dido é obrigada a morrer por causa de um erro.

[…]

E tu não sejas retido pelo meu cuidado; seja retido pelo menino Iulo.
[…]

O que mereceu o menino Ascânio, o que mereceram os Penates?
A onda submergirá os deuses arrebatados dos incêndios?”
(v. 67-68; 75; 77-78)

“Língua falsa”, as más-línguas, ou a monstruosa “Fama” descrita por Virgílio no livro IV de Eneida. Dido tenta argumentar que, certamente, os deuses não ficariam felizes com a atitude de Eneias, pois ele punha em risco a vida de Ascânio ao se aventurar novamente em mar tempestuoso.

“Mas nem me levas contigo, nem as coisas que declaras para mim, pérfido,
os objetos sagrados, o teu pai sobrecarregaram teus ombros.
Enganas tudo, nem de fato tua língua começa a trair-nos.
E eu, como primeira, sou castigada.
Se procuras saber onde está a mãe do formoso Iulo,
morreu, sozinha, abandonada pelo esposo cruel.
Narravas a mim estas coisas! Estas coisas me perturbaram. Abrasa-me,
que mereço; minha pena deverá ser menor do que a culpa.” (v. 79-86)

Uma importante diferença entre a Dido descrita por Virgílio e Ovídio é o fato de que, na descrição de Virgílio, a rainha considera verdadeira a narrativa sobre a sorte de Creúsa, narrada por Eneias no canto II (vv. 738-744; 768-794).101; já na versão de Ovídio, ela questiona se a primeira mulher do herói se perdeu ou se foi, na verdade, abandonada. De certa forma, a Dido de Ovídio, ao ser capaz de questionar a narrativa de Eneias, se torna mais subjetiva, ou “racional”, que a Dido de Virgílio.

“Aquele dia, no qual uma tempestade cerúlea, com as águas
repentinas, nos impeliu para a caverna inclinada, nos destruiu.
Eu tinha ouvido uma voz; pensei que as ninfas tinham chamado;
as Eumênides deram presságios aos meus destinos.” (v.93-96)

“Caverna”, “Ninfas” e “Eumênides” são referências ao plano de Juno descrito no Livro IV da Eneida: o falso himeneu. Aqui, ela diz ter acreditado benéficos, vindo das ninfas, os trovões e os indícios divinos ocorridos enquanto estavam na caverna, mas que, agora, percebia que eram presságios ruins, oriundos das Eumênides (personificações da vingança, ou seja, as Fúrias infernais.)

Na sequência do poema, Dido descreve que, durante a noite, ouvira o chamado de seu esposo Siqueu, que a esperava no Hades, uma alusão ao canto VI da Eneida, em que Eneias, em sua descida ao Hades, encontra Dido e Siqueu nos campos Lugentes. Siqueu teria perdoado a traição de Dido, pois ela fora vítima de uma artimanha de Vênus:

A mãe divina e o velho pai, o fardo piedoso do filho,
deram-me a esperança de um homem que iria permanecer.
Se foi o errar, o erro tem causas honestas; (v. 13-15)

A rainha se diz iludida pelo herói, filho da deusa do Amor e, justamente, por sua infeliz história durante a queda de Troia, a perda de Creúsa e, posteriormente, de Anquises, ela acreditava que Eneias desejava criar raízes e formar uma família. Dido insinua que poderia estar grávida do troiano, e que ao abandoná-la, selaria o destino da mãe e do filho que carregava em seu ventre:

“Talvez não só deixes, celerado, Dido grávida,
mas também parte de ti se esconda fechada em meu corpo.
A infeliz criança juntar-se aos destinos da mãe,
e serás autor do funeral de um ainda não filho,
e com sua mãe morrerá o irmão de Iulo,
e um só castigo atingirá os dois juntos.”

Dido também compara as virtudes heroicas de Heitor, na queda de Troia, com a falta de virtudes de Eneias, ao abandoná-la, dizendo que ele não era merecedor de ser o fundador de uma nova Troia.

“tu, Marte, os conduzas, e ele seja o fim de teu castigo,
e Ascânio, com felicidade, sacie seus anos, e os ossos do velho Anquises suavemente estejam estendidos!” (v. 36-41)

Dido invoca Marte para que auxilie o troiano nas guerras futuras que enfrentaria na Ausônia e que este fosse o fim de seu castigo. Na versão de Ovídio, Dido deseja o bem ao herói e a seu filho Ascânio, um verdadeiro contraste com a Dido vingativa narrada por Virgílio, que desejava servir o filho num banquete ao pai. Dido roga para que ele dela se lembre pelo menos com carinho, tendo-a em seu coração como uma “Esposa Estrangeira”:

“Se te envergonhas da esposa, não casada, mas eu seja chamada esposa estrangeira, contanto que seja tua” (v. 46-47)

Nos dois versos finais, a rainha conclui a carta anunciando o seu suicídio pela espada de Eneias:

“Eneias deu não só a causa da morte mas também a espada;
tendo usado a sua própria mão, Dido morreu.” (v. 74-75)

Nos versos de Ovídio, Eneias é retratado como o culpado da morte da infeliz rainha. Já na epopeia virgiliana, Eneias é piedoso, cumpre a vontade divina, renegando os próprios desejos e sentimentos, sua missão é maior que o próprio herói. De certa forma, Virgílio sugere a ideia que a relação de ambos era inviável pois, mesmo que o destino tivesse unido os dois corações no plano da natureza, no plano espiritual eles não haviam sido destinados pela Providência Divina. Para ser verdadeiro, o amor precisa ser unido tanto no plano natural quanto no espiritual. Dido também representa todo aquele ser que, por livre arbítrio, não cumpre sua vocação, se afasta do chamado divino. Eneias, diferente de Dido, é aquele que cumpre sua vocação; é o herói piedoso, que deixa a si mesmo em segundo plano, e segue o chamado divino.

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