O cultivo da Memória no processo de aprendizagem

Logo nos primeiros parágrafos de “O livro da memória: Um estudo sobre a memória na cultura medieval”, de Mary Carruthers, a autora relata a memória prodigiosa de São Tomás de Aquino, o qual era capaz de ditar seis textos diferentes ao mesmo tempo a seus secretários sem perder a sequência lógica de sua exposição.

A autora enfatiza que, na educação medieval, “a escolha entre treinar ou não a memória de um indivíduo, não era uma escolha ditada pela conveniência; tratava-se de uma questão de ética. Uma pessoa sem memória, se tal coisa pudesse existir, seria uma pessoa sem caráter moral e, em um sentido elementar, sem humanidade”.

Muitas metáforas foram usadas tanto por pensadores da Antiguidade quanto por intelectuais da Idade Média para descrever o processo de memorização e sua importância fundamental para a aquisição do conhecimento.

Sócrates comparava a memória a uma tábua ou superfície de cera a ser escrita e armazenada na mente. A incompletude também é uma característica da memória, porque ela é uma recordação, uma imagem mental, e não a coisa em si mesma. Essa opinião era comum tanto entre os platônicos como entre os aristotélicos.

Cícero também usava de figura semelhante à de Sócrates: “uma tabuleta de cera”. Já Dante escreveu a respeito do processo de memorização comparando-o a um “livro mental”. Outras metáforas comuns relacionadas à memória eram “tesouro da sabedoria” ou “depósito da sabedoria”. Essa imagem representa a memória como uma espécie de arquivo organizado do conhecimento na mente. A palavra “tesouro” se referia tanto ao “depósito” ou “cofre” em que se armazenam as imagens mentais, quanto ao próprio conteúdo armazenado. Santo Agostinho, em sua obra “Confissões”, mencionou os “tesouros de inumeráveis imagens na sua memória”.

No quesito de organização da memória, também são relacionadas a metáfora “cella” que, literalmente, podia tanto designar o local onde se armazenavam aves domésticas quanto o local onde as abelhas, organizadamente, produziam o mel. Rábano Mauro (Século IX) disse que “A Sagrada Escritura é um favo de mel preenchido com sabedoria espiritual”.

Como representação de “fragmentos de conhecimento”, Platão usava a imagem de “ninhos de pombos”: alguns, mais cheios; outros, menos ocupados. As aves são representações comuns para “almas”, “memórias”, “pensamento” e “sabedoria”. Alguns exemplos notáveis são a representação do “Espírito Santo” e a pomba solta da Arca de Noé.

Outra figura de linguagem fortemente relacionada à memória, comumente usada por Hugo de São Vitor, foi a “Arca Sapientiae”,  uma arca de sabedoria construída na mente de cada estudante. Hugo de São Vitor comparava-a à arca da Igreja, construída na mente de Deus. Neste sentido, a memória é entendida como a organizadora do processo de educação e aprendizado.

Um fato importante sobre a memória é que as coisas mais bem experimentadas e refletidas mantém-se mais bem armazenadas na memória, enquanto as demais são facilmente descartadas ou esquecidas.

O cultivo da memória, como era entendido no período da antiguidade e no período medieval, não se referia a simplesmente decorar os itens de uma lista ou cada palavra de um texto. A memorização era vista como um processo muito mais relacionado à própria composição mental segundo ideias anteriormente refletidas e experimentadas pelo indivíduo.

Para uma memorização eficaz, no sentido de construir uma arca de conhecimento, é essencial que a informação a ser memorizada deva ser, primeiramente, entendida, experimentada, vivenciada. Em seguida, gravam-se na memória os seus fragmentos mais importantes.

Um erro comum é associar a memorização ao ato de decorar uma lista de palavras ou definições e repeti-las como “um papagaio”, sem tê-las realmente compreendido e experimentado. Dorothy Sayers, quando assim se referiu à “Fase Gramatical”, usou essa imagem do papagaio como uma metáfora para representar uma ideia. Talvez a comparação não tenha sido a mais adequada, mas ela certamente o fez com o propósito de enaltecer o processo de memorização que hoje os educadores contemporâneos, infelizmente, têm relegado ao último plano.

O modismo entre os “educadores brasileiros” de afirmar que não é preciso memorizar mas, sim, “entender no contexto”, é algo que beira o irracional. É fato que não existe aprendizado sem memorização. Então o que seria esse “entender no contexto” no processo da educação infanto/juvenil? Um mero processo de adivinhação? Qual o verdadeiro intuito? Um jogo manipulativo para incutir uma interpretação distorcida ou ideológica?

O que podemos constatar, na prática, é que os estudantes, ao não exercitarem a memorização, ao serem submetidos a uma formação intelectual ineficaz, se tornam adultos incapazes de compreender o que leem, inclusive, uma simples notícia jornalística. Apresentam um vocabulário insuficiente para o domínio do idioma pátrio e, assim, não dominam o próprio idioma; não dominando o idioma, não conseguem compreender a realidade; sem compreender a realidade, tornam-se adultos incapazes de enfrentar os desafios, de resolver problemas e de identificar oportunidades para seu crescimento, espiritual, intelectual e profissional.

Em suma, o sistema educacional brasileiro tem formado gerações moral e intelectualmente deficiente, ou parafraseando Mary Carruthers  formando “pessoas sem caráter moral e, em um sentido elementar, sem humanidade”. Cabe a nós corrigir os estragos promovidos por esse sistema em nossos filhos, cultivando e exercitando neles, tanto quanto em nós próprias, o tesouro de sabedoria que é nossa memória.

Vias Clássicas Valorizando o Conhecimento