Em 1947, no cenário político do pós-guerra, Dorothy Sayers, escritora inglesa, leu e apresentou para um público de pedagogos da Universidade de Oxford o ensaio intitulado “Ferramentas Perdidas da Aprendizagem”. O texto foi publicado de forma impressa em 1948.
No exórdio, Sayers apresenta um panorama dos problemas decorrentes da educação contemporânea, mostrando-se hábil observadora da sociedade que a cerca. A autora relata que a educação contemporânea tem exigido dos alunos mais anos dedicados à vida escolar, ou seja, à prolongação artificial da infância e da adolescência intelectual, apresentando, ao longo desses anos letivos, inúmeros assuntos de forma desconexa. O resultado tem se mostrado preocupante: os estudantes não sabem distinguir fatos de opinião, falham em definir termos, não dominam o idioma pátrio, são facilmente manipuláveis pela mídia e propaganda de massa; ao deixarem a escola, esquecem o que aprenderam e não sabem aprender nenhum novo assunto por conta própria. Ou seja, não são ensinados a pensar: são apresentados a inúmeros assuntos, exceto à arte de aprender.
Na sequência, a autora discorre sobre como era, na Idade Média, o programa de educação fundamentada nas Artes Liberais. O programa era dividido em Trivium e Quadrivium. Sayers argumenta que o Trivium eram as Artes pertinentes à linguagem e que seu propósito era ensinar ao aluno o uso apropriado das ferramentas do aprendizado, ou seja, aprender a pensar e se expressar corretamente.
“A educação moderna concentra-se em ‘ensinar matérias’ deixando o método de pensar, argumentar, expressar conclusões para ser adquirido pelo estudioso no decorrer do tempo, enquanto que a educação medieval se concentrava primeiramente em forjar e aprender a usar as ferramentas do aprender, utilizando a matéria que fosse útil como material para realizar os desenhos necessários até que o uso da ferramenta fosse quase instintivo”. SAYERS (2018, p. 18-19).
Em paralelo à observação de Sayers sobre o panorama da educação moderna inglesa na década de 1940, observamos, no Brasil, fenômeno similar e, talvez, ainda mais catastrófico: a proposta do BNCC, assim como as de outros programas nacionais, apresentam a sugestão de um currículo com uma grande variedade de assuntos geralmente abordados de forma superficial e desconexa; os programas de educação exigem que a criança, desde cedo, já aos 4 anos, seja submetida por inúmeras horas à “experiência escolar” na qual são bombardeadas com ideologias disfarçadas de conteúdo didático. O estudante passa horas em salas de aula mas, ainda sim, o programa de aprovação automática não exige do educador nem do estudante um padrão mínimo de qualidade de aprendizado. Os estudantes concluem o ensino médio sem dominar o idioma pátrio, não sabem diferenciar tempos verbais, não conseguem compreender a realidade que os cerca.
Prosseguindo em seu discurso, Sayers relata críticas comuns tecidas contra a educação escolástica. Num dos exemplos citados, comenta sobre um orador bastante volúvel do programa britânico “Brains Trust” que teria criticado que na “Idade Média era uma questão de fé saber quantos arcanjos poderiam dançar na ponta de uma agulha”. A autora explica que não era uma “questão de fé”, mas um exercício de debate lógico comum aplicado aos estudantes medievais, para que refletissem sobre a natureza da substância angelical, cuja resposta, era que os anjos seriam puras inteligências, e não matéria, mas limitados de modo que pudessem ter lugar no espaço, mas não extensão. A autora traça, de forma análoga, um paralelo com o pensamento humano, que seria, da mesma forma, não material e limitado.
Como solução para o problema da educação moderna, Sayers propõe o retorno às Artes do Trivium com certas adaptações ao nosso tempo. Ela propõe estágios de desenvolvimento: “Papagaio”, “Arrojado” e “Poético”. O estágio do “Papagaio” enfatizaria a Arte da Gramática, o estágio “Arrojado” o desenvolvimento da Lógica e, o estágio “Poético”, o da Retórica.
A autora sugere que o Latim deve ser introduzido o quanto antes, preferencialmente, já no estágio do “Papagaio”. Sayers reforça a importância da memorização, da narração oral e da recitação. Independente do conteúdo ensinado, o objetivo é criar ricas imagens mentais para fortalecer a memorização. Ao estudar História, por exemplo, o estudante deve ser introduzido aos principais fatos e personagens históricos com riqueza de detalhes: em que época viviam, como era a arquitetura, o vestuário? Desta forma, ao encontrar uma menção a uma data, o estudante tivesse em sua memória uma imagem mental sobre a época em questão. O mesmo tipo de abordagem era incentivado para estudo de ciências e geografia. Para matemática, por exemplo, é essencial que o estudante memorize as tabuadas de multiplicação e adição, para que consiga facilmente fazer qualquer cálculo mental. Para Sayers, nesta fase seria mais importante memorizar do que propriamente entender o conteúdo ensinado.
Enquanto, no primeiro estágio, predominaria a observação e a memória, no estágio “Arrojado” as faculdades predominantes seriam as da Razão Discursiva. É nesta fase que deveria ser introduzida a lógica formal. No estudo do idioma pátrio, uma ênfase maior na sintaxe e na análise da linguagem, na produção textual de ensaios e artigos argumentativos. Na matemática, dever-se-ia introduzir álgebra, geometria e conceitos aritméticos mais avançados. A matemática não seria, deste modo, uma “nova matéria”, mas um subproduto da lógica formal. A história seria ensinada e analisada pelas virtudes de seus personagens históricos. Independente dos assuntos estudados no estágio lógico/dialético, o fundamental, segundo a autora, é concentrar-se na beleza de uma demonstração bem-feita ou de um argumento bem construído. Neste estágio, o estudante perceberá de forma mais consciente como os diferentes assuntos estudados podem interligar-se.
No estágio poético, a maior dificuldade é manter os conteúdos e assuntos separados pois, agora, o estudante já terá aprendido suas possíveis conexões. Nesta fase, o estudante já estaria pronto para escolher em quais assuntos deseja se especializar. Ou seja, a ênfase é naquelas disciplinas obrigatórias para o ingresso em um curso superior.
Em sua defesa final, a autora afirma que, nas décadas anteriores, teríamos sobrevivido “do capital educacional” produzido na educação medieval. Não importando o quanto uma tradição tenha firmes raízes, se não alimentada e nutrida, deixará de produzir frutos. Por isso, seria essencial recuperar as ferramentas perdidas da aprendizagem, a forma comprovadamente eficaz de desenvolver a inteligência. A autora conclui lembrando-nos que o único fim da educação é ensinar os homens como aprender por si mesmos.
Um dos pontos que, particularmente, gostaria de destacar neste ensaio de Sayers, é a forma como ela descreve a memorização no estágio do “papagaio”. O primeiro equívoco talvez, esteja na metáfora utilizada para descrever a fase gramatical como a de um “papagaio”. O que faz um papagaio? Repete o que escuta mas sem nada entender do contexto. E, infelizmente, tem sido literalmente interpretada por educadores contemporâneos como a técnica de “memorizar listas de coisas e palavras”. Fazendo um estudo mais aprofundado, podemos concluir que o cultivo da memória, como era entendido no período da antiguidade e no período medieval, não se referia a simplesmente decorar os itens de uma lista ou cada palavra de um texto. A memorização era vista como um processo muito mais relacionado à própria composição mental segundo ideias anteriormente refletidas e experimentadas pelo indivíduo. Em síntese: para uma memorização eficaz, no sentido de construir uma “arca de conhecimento”, é essencial que a informação a ser memorizada deva ser, primeiramente, entendida, experimentada, vivenciada. Em seguida, gravam-se na memória os seus fragmentos mais importantes.
O modismo entre os “educadores brasileiros”, de afirmar que não é preciso memorizar mas, sim, “entender no contexto”, beira o irracional. É fato que não existe aprendizado sem memorização.
É verdade também que o projeto de destruição e corrupção da inteligência relatado por Sayers não é recente, ganhou imenso impulso no século XVIII, principalmente com a colaboração de Adam Weishaupt, que pregava que a educação aos jovens deveria ser variada em assuntos, mas superficial, pois isso ativaria a vaidade do jovem e permitiria que ele fosse facilmente manipulável. DELLASSUS (2016, p. 269-271).
Ao analisarmos as propostas de educação adotadas por grande parte das instituições escolares no Brasil, observamos o mesmo engenho, e o produto desta máquina destruidora de mentes é o idiota útil.
Deste modo, é louvável o impulso dado por Sayers em propor o retorno às Artes Liberais na educação de base.
Referências:
DELASSUS, Monsenhor Henri. A conjuração anticristã. Campinas: Castela, 2016.