O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte I

Por Géssica Hellmann

Ao estudar a história da antiguidade, meritoriamente, destacam-se dois grandes historiadores: Tucídides e Tito Lívio. Neste ensaio, analisaremos o primeiro livro da obra de cada historiador, sua estrutura, objetivo e método historiográfico. Em seguida compararemos o modo como os poetas narraram algumas passagens históricas.

Sabemos que Tucídides foi um historiador e general ateniense que viveu no século V a.C. Escreveu a “História da Guerra do Peloponeso” do qual foi não só testemunha como participante. Tito Lívio, por sua vez, foi um romano nascido em Pádua, no ano 59 a.C., que viveu durante as guerras civis que assolaram a Península Itálica antes e depois de Júlio César. Estudou filosofia e escreveu a grandiosa obra “Ab Urbe Condita”.

Tucídides escreveu sua obra em meio à guerra considerada, por ele próprio, a maior da história da Hélade, maior mesmo que a Guerra de Troia. Já Tito Lívio redigiu sua obra durante a transição do período da República para o Império Romano e seu escopo é mais amplo: relatar a história de Roma desde a sua fundação até o primeiro século antes da era Cristã. É necessário agora compreender o objetivo que cada autor se propôs ao escrever sua obra, a estrutura adotada e os assuntos tratados por cada um.

Quanto ao método historiográfico, Tucídides, em seu relato histórico, desconsidera o fabuloso, alertando para o perigo da crença fiel na narrativa dos poetas e logógrafos. Segundo Tucídides os “logógrafos compuseram suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade”, salientando a importância da seleção e do filtro das fontes históricas: relatos de segunda mão, geralmente, seriam distorcidos; as fontes primárias seriam sempre preferíveis.

Busto de Tucídides, cópia romana cerca 100 d.C.

Quanto ao relato da guerra do Peloponeso, Tucídides foi rigoroso em sua investigação: “O empenho em apurar os fatos constituiu tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com a sua simpatia por um lado ou por outro, de acordo com sua memória.”. Por esse motivo, muitos o consideram “o pai da historiografia científica”. 1

Tucídides ressalta que muitos podem achar enfadonha sua narrativa, justamente pela ausência do fabuloso, mas que o seu real objetivo era tornar seu relato histórico um “patrimônio sempre útil”. Tucídides compreendia a História como “Mestra da Vida”, enfatizando a sua função pedagógica para as futuras gerações:

Quem quer que deseje uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência do seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isso me bastará.” 2

O livro I de Tucídides pode ser dividido em três partes: (1) A história mais antiga da Hélade, (2) A consequência da guerra contra os Persas e (3) A descrição desde o início do conflito até o discurso de Péricles, quando Atenas oficialmente decide ir à guerra.

Inicialmente, Tucídides expõe o tema central de sua obra: “descrever a guerra entre os peloponésios e atenienses desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande e mais importante que todas as anteriores”. 3

Na sequência, ele resume a história mais remota da Hélade: os povos que ali viviam eram, em sua maioria, nômades; o comércio entre os povos não era costumeiro e, por medo, não se aproximavam uns dos outros, nem por terra, nem por mar. A maioria dos povos nômades preferia as terras férteis da Tessália ou da Beócia, as regiões mais cobiçadas e sujeitas a invasões de outras tribos. Porém, a Ática, por ser extremamente árida, não sofria desses problemas e, por isso, foi habitada pela mesma gente destas épocas remotas. Segundo Tucídides, esta seria uma das causas de Atenas ter se desenvolvido de forma estável, se tornando um grande centro cultural, intelectual e filosófico. Na análise do historiador Tucídides, uma evidência para a fraqueza dos tempos antigos da Hélade seria a desunião entre os diferentes povos que ali viviam, pois, até onde se sabe, não teria havido empreendimento conjunto anterior à Guerra de Troia.

Outra característica marcante entre os povos que habitavam as ilhas e o litoral do mar Heleno era o costume da pirataria. Tucídides enfatiza a mútua desconfiança dos povos e o motivo de se “armarem” por temer invasões em suas cidades desprovidas de muralhas. Os atenienses, segundo o autor, foram os primeiros a se “desarmar”, adotando um modo de vida mais ameno e refinado, outra evidência do motivo da prosperidade intelectual e cultural dos atenienses. Somente quando a frota de Minos foi constituída, a navegação se tornou mais segura, pois os malfeitores das ilhas haviam sido expulsos por ele. Minos, também, colonizou muitas das ilhas e cidades litorâneas, levantando muralhas em torno de suas cidades. É interessante observar que Tucídides ao descrever o rei Minos, não se refere a nenhum momento ao fabuloso, que comumente acompanha a descrição poética deste antigo rei, limitando-se a relatar aquilo que lhe concede um caráter humano e histórico.

Ao descrever a Guerra de Troia, o autor discorre sobre as probabilidades da união das tribos da Hélade com Agamenon no início da Guerra de Troia. Segundo ele, mais provável parece ter sido um fator de poder e submissão, do que por estarem presos a um juramento a Tindário, pai de Helena.

Em, nenhum momento do relato desses fatos, Tucídides aborda o fabuloso: na verdade, a ausência do fabuloso é uma característica marcante. Ele sugere que a narração homérica parece “exagerada”, pois as cidades não eram tão populosas e ricas suficientemente para enviar tantos navios e guerreiros, como descreve Homero na Ilíada. E, o longo tempo em que durou esta guerra se deve, principalmente, ao fato das cidades da Hélade não terem recursos financeiros suficientes para sustentar-se no campo de batalha. Foi somente por causa das vitórias das primeiras batalhas dos helenos contra os troianos, que foi possível fortificar muralhas defensivas no acampamento dos helenos. Para se sustentar, era frequente a pilhagem das cidades vizinhas. O autor explica também como as regiões da Hélade se desenvolveram após a guerra de Troia, principalmente o comércio e as frotas marítimas.

Na segunda parte do livro I, Tucídides apresenta um breve relato sobre a guerra com os Persas e como ocorreu a defesa por parte dos Helenos. Devido à importante atuação tanto dos lacedemônios quanto dos atenienses na guerra contra os persas e, principalmente, após a expulsão do Bárbaro, algumas cidades da Hélade se aliaram aos atenienses e, outras, aos peloponesos. Atenas, segundo Tucídides, começou a exigir cada vez mais tributos de suas colônias e de seus aliados.

Tucídides relata que a Guerra do Peloponeso se estendeu por longo tempo e que, no seu curso, a Hélade sofreu desastres como jamais ocorrera num lapso de tempo comparável: cidades capturadas e devastadas; em extensas regiões ocorreram terremotos, eclipses do sol, seca, fome, epidemias. Todos esses eventos ocorreram simultaneamente durante a Guerra do Peloponeso.

Na terceira parte do livro I, o historiador narra os acontecimentos que deram início à Guerra do Peloponeso – por exemplo, o incidente de Epidamnos, a guerra entre Córcira e Corinto e o primeiro combate naval. Na sequência, o autor discorre sobre como os corcireus conseguiram se aliar aos atenienses.

Tucídides prossegue relatando diferentes conflitos; entre eles, destacamos: a defecção de Potideia, o cerco iniciado pelos atenienses, a declaração de rompimento do tratado pelos lacedemônios, que convocaram uma assembleia de guerra aos atenienses. Seguem-se ainda outros eventos: conjuração de Cilon, traição de Pausânias, exílio de Temístocles, ultimato dos lacedemônios. Nos últimos capítulos do livro I, Tucídides narra o período em que os atenienses finalmente decidiram ir à guerra e conclui com o primeiro discurso de Péricles.

No discurso historiográfico de Tucídides se encontram os eloquentes discursos proferidos inicialmente pelos corcireus e coríntios para conquistar aliança com os atenienses; os discursos de Arquidamos, rei dos lacedemônios e Stenelaidas; e o discurso de Péricles. Segundo a interpretação de Tucídides, os “eles escolhem a guerra mais por temor que por convicção interior” (I, 88).

Tito Lívio

Quanto, ao livro I de Tito Lívio pode ser dividido da seguinte forma: (1) Prefácio, (2) Chegada de Eneias à Itália até o nascimento de Rômulo e Remo, (3) Fundação de Roma e rapto das Sabinas, (4) Numa Pompílio, (5) Tulo Hostílio, (6) Anco Márcio, (7) Tarquínio Prisco, (8) Servio Tulio e (9) Tarquínio Soberbo.

No seu prefácio, Tito Lívio, humildemente reconhece que já era muito conhecida a história da origem do povo romano, pois outros já a haviam contado, mas que ele se sentiria feliz em escrever os relatos históricos para “celebrar os altos feitos do maior povo do mundo”. Segundo o autor, a história remontava a mais de setecentos anos mas, infelizmente, no momento em que escrevia a obra, Roma se inclinava sob o peso da própria grandeza. Ao iniciar o seu relato pelas histórias antigas, sua recompensa seria “esquecer os males atuais”, referindo-se, muito provavelmente, à transição da República para o Império.

Ao contrário de Tucídides, Tito Lívio em seu relato apresenta o fabuloso, mas sem afirmá-lo ou contestá-lo. O autor busca, de certa forma, relatar o “provável”, depurando a verdade mais razoável a partir do mito. Neste sentido, o autor não despreza a tradição oral como fonte histórica. Seu método, porém, parece menos rigoroso do que o proposto por Tucídides.

Por exemplo, ao narrar o nascimento de Rômulo e Remo, Tito Lívio apresenta tanto a versão popular de que eles haviam sido amamentados por uma loba, quanto sugere que a “loba” pode ser compreendida como as prostitutas da época, que recebiam essa alcunha.

Tito Lívio, em sua narrativa, concede destaque etiológico aos costumes. São os costumes e os valores morais de um povo, a base fundamental de uma civilização.

Assim como Tucídides, Tito Lívio também enfatiza a função pedagógica da história:

A meu ver, o que é preciso estudar com toda a atenção é a vida e os costumes de outrora, é a obra dos homens que na paz e na guerra ajudaram a construir e engrandecer o império. Em seguida, observar como o paulatino enfraquecimento da disciplina acarretou, por assim dizer, o relaxamento dos costumes e como sua decadência cada vez mais acentuada levou-os à queda brusca de nossos dias, quando a corrupção tanto quanto seus remédios nos parecem insuportáveis”. 4

A primeira parte consiste no prefácio da obra, em que Tito Lívio explica seu objetivo e expõe o seu método. A segunda parte traça a história desde a chegada de Eneias, filho de Anquises e da deusa Vênus, à Itália; sua aliança com Latino e seu casamento com Lavínia, filha de Latino; a guerra com Turno e seus aliados; a morte de Latino e, posteriormente, a morte do próprio Eneias e sua última batalha próxima às margens do rio Numício.

Sejam quais forem as qualidades humanas ou divinas que se lhe atribuam, jaz agora à margem do rio Numício e é chamado de Júpiter Indigete”. 5

A narrativa prossegue com a fundação da cidade Alba Longa, por Ascânio, filho de Enéias. Tito Lívio diz que não é possível afirmar se sua mãe era Creúsa ou Lavínia e que, na verdade, o fato inquestionável é que era filho de Enéias, e isso bastava. Entre a fundação de Lavínio e a fundação de Alba Longa decorreram trinta anos, segundo Tito Lívio. Em seguida, o historiador traça a genealogia de Enéias a Reia Silva, mãe de Rômulo e Remo.

O autor inclui o fabuloso, narrado pelos poetas e pela tradição, ao alegar paternidade de Rômulo e Remo ao deus Marte. Uma das características fundamentais atribuídas a Rômulo foi a belicosidade, deste modo tanto relatando a tradição quanto sugerindo uma etiologia para a belicosidade do povo romano. Sua narrativa prossegue com as histórias dos gêmeos que mataram o rei usurpador Amúlio (tio-avô de Rômulo e Remo) e como restituíram o poder ao Númitor, pai de Réia Silva. Tito Lívio narra também o fratricídio e a morte de Remo, a introdução ao culto de Hércules, a organização de Roma e a escolha dos senadores, o rapto das sabinas, o combate dos sabinos aos romanos e a intervenção das sabinas para conciliar os dois povos.

Tito Lívio relata que Rômulo pede intervenção a Júpiter no combate com os sabinos. “Depois de pronunciar essa oração, como se tivesse a certeza de que suas preces tinham sido ouvidas, exclamou: ‘Agora, romanos, o excelente e poderoso Júpiter vos manda parar e recomeçar o combate’. Os romanos se detiveram como se comandados por uma voz celeste, e o próprio Rômulo correu para as linhas avançadas.” 6 O historiador reforça a tradição e a religiosidade do povo romano, deste sua fundação.

Relata também, de modo modesto, o papel das sabinas, raptadas pelos romanos, para o fim da guerra:

Se este parentesco, se este casamento vos desagradam, é contra nós que se deve voltar vossa cólera, Nós é que somos a causa da guerra, dos ferimentos e da morte de nossos maridos e de nossos pais. Antes morrer do que sobrevivermos a uns e outros, ficando viúvas e órfãs!7

Após a morte de Rômulo, assume “Numa Pompílio”, cujo papel fundamental foi incutir no povo romano a religiosidade em tempos de paz. Tito Lívio descreve Numa como um líder justo e piedoso. Assim como Rômulo impôs um caráter belicoso aos romanos, Numa Pompílio, de certa forma, reforçou as bases da fundação da cidade com “base no direito, na lei e nos bons costumes”. Estabeleceu os colégios sacerdotais, os cultos aos deuses celestes, rituais funerários, como decidir e identificar os presságios anunciados. Mas sua principal obra durante o seu reinado foi a defesa da paz e do trono.

Na sequência, o historiador relata como os romanos ampliaram o seu domínio, ao guerrear contra povos vizinhos e, ao vencê-los, convidá-los a se tornarem “romanos”, gradativamente ampliando não só seu território, como a própria população de Roma. O autor descreve em seguida o imprudente reinado de Tarquínio, o Soberbo e o fim da era monárquica, com destaque para o crime cometido por Sexto Tarquínio, filho do rei, contra Lucrécia, ato que encheu de horror e repulsa os romanos. De certa forma, esse também é um dos motivos que levaram Tito Lívio a relatar, no seu prefácio, um certo receio quanto à decadência do tempo em que vivia – século I a.C – a transição da República para o Império Romano.


1 – TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, Livro
I, 22.
2 – Ibidem.
3 – Ibidem. Livro I, 1.
4 – LÍVIO, Tito. História de Roma. São Paulo: Paumane, 1989. Livro I, p. 18.
5 – Ibidem, p. 23.
6 – Ibidem, p. 36-37.
7 – Ibidem, p. 37-38.

Leia a série completa:
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte I
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte II
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte III

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