O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte III

O papel alegórico do mito nos estudos clássicos da antiguidade

A poesia é a forma mais antiga de transmitir oralmente a tradição, os costumes e a moral fundadora da antiga civilização greco-romana. O surgimento de novos modos de discursos, especialmente “História” e “Filosofia”, favoreceu uma contestação ao discurso poético. Segundo Luc Brisson, em seu livro “Introdução à Filosofia do Mito”, as atitudes do historiador e do filósofo em relação ao mito foram marcadas por grandes ambivalências. O autor afirma que Platão condenou a alegoria do mito, enquanto Aristóteles adotou uma atitude conciliadora em relação à alegoria, devido ao fato da estreita relação estabelecida por Aristóteles entre Mito e Filosofia. Segundo Aristóteles, “o amor pelos mitos é, de alguma maneira, amor pela sabedoria”. 14

A escola de Aristóteles, afresco de Gustav Adolph Spangenberg, 1883–1888

Diferente de Tucídides, que considerava o mito prejudicial e tecia algumas críticas ao estilo exagerado dos poetas e dos “logógrafos”, como se referia a Hesíodo, a interpretação alegórica do mito se iniciou de forma conciliadora com Aristóteles e, mais tarde, com maior ênfase, entre os filósofos estoicos.

A interpretação alegórica dos mitos, mesmo que de formas diferenciadas, era também praticada pelos historiadores e pelos filósofos, tanto no início da Era Cristã quanto na Idade Média. Por exemplo, a interpretação dos mitos na Idade Média pode ser dividida de três formas principais: (1) Interpretação Histórica e o Evemerismo, (2) Interpretação Física e (3) Interpretação Moral.

No Evemerismo os “deuses são homens divinizados por seus contemporâneos”. Na Interpretação Física, relacionavam-se os deuses e outros entes mitológicos, principalmente, aos astros e planetas. Também havia uma relação interpretativa com as estações do ano e os elementos como ar, fogo, terra e água. Já a Interpretação Moral consistia em identificar na figura dos deuses um significado espiritual e, nas suas ações, um ensinamento moral.

Conforme descreve Aristóteles em sua obra “A Arte Poética”, a função da “obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas as quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos que podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais; esta fatos particulares. Enunciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia, ainda quando nomeia personagens.” 15

Ao apreciarmos o discurso poético, principalmente o contraste entre os vícios e as virtudes, as características humanas universais descritas na narração poética, possibilitam uma forma compreender a realidade em que vivemos hoje, e nos fornece ferramentas para enfrentar os desafios e os problemas impostos pela sociedade. A poesia, neste sentido, apresenta um papel pedagógico filosófico.

Tanto Tucídides quanto Tito Lívio, enquanto historiadores, parecem ter atingido seus objetivos na função da História como “Mestra da Vida”. Tucídides, ao nos descrever os motivos do início da guerra do Peloponeso, e as estratégias utilizadas pelas partes em conflito, oferece-nos um indício de que o historiador foi assertivo quando enunciou seu objetivo:

“Quem quer que deseje uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência do seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isso me bastará.”

Tomemos, por exemplo, a estratégia Russa e sua devastação da cidade portuária de Mariupol na guerra contra a Ucrânia de 2022. Os portos da cidade eram estratégicos para os russos. Tucídides nos relata, no conflito entre Epidamnos e a Córcira, a importância estratégica da localização da Córcira para o comércio marítimo entre a Sicília e a Itália, sugerindo que esse foi um dos motivos que levaram os atenienses a firmar uma aliança defensiva aos corcireus.

Já Tito Lívio, ao colocar como seu objetivo o enaltecimento das origens do povo romano, seus feitos e costumes, com o objetivo de lembrar aos romanos do seu tempo, os quais, infelizmente, segundo o historiador, já haviam cedido à corrupção de costumes e à cobiça, também exerce a sua função pedagógica ao nos ensinar de onde viemos, a nossa origem, recobrando o orgulho de participar de uma tradição.

É de fundamental importância que nós, educadores clássicos, tornemos cada vez mais acessível o estudo dos textos clássicos, das fontes primárias, aos nossos estudantes da fase retórica. Concluo o ensaio com os versos reverentes de Dante a Tito Lívio:

“ per li Troiani e per la lunga guerra
che de l’anella fé sì alte spoglie,
come Livio scrive, che non erra,”
(Inferno, XXVIII, v. 10-12)

ou na tradução de Italo Eugenio Mauro:

“pelos troianos, e a da longa guerra
que de anéis deixou presa inusitada,
como relata Lívio, que não erra” 16


14 – BRISSON, Luc. Introdução à Filosofia do Mito. São Paulo: Paulos, 2014.
15 – ARISTÓTELES. HORÁCIO. LONGINO. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 28.
16 – ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo: Editora 34, p. 187.


Leia a série completa:
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte I
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte II
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte III

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