O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte II

Discurso Poético versus Discurso Histórico

Procedemos agora a uma breve análise dos discursos poético e historiográfico, comparando alguns fatos em comum narrados por Tito Lívio, Virgílio e Ovídio.

Logo nos primeiros versos do proêmio do Livro I de Eneida, escrita pelo poeta Virgílio, ele apresenta o herói troiano, aquele que mais adiante, no canto VI, seria chamado pelo poeta de “O primeiro romano”.

“Arma urumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam fato profugus Lauinaque uenit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
ui superum, saeuae memorem Iunonis ob iram,
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos Latio; genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae.”

ou na tradução de Carlos Alberto Nunes:

“As armas canto e o varão que fugindo das plagas de Troia
por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro
e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito
tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno,
guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade
e o Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina,
dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados.” 8

Virgílio destaca a origem mítica da futura Roma: um herói divino – filho de Vênus e o mortal Anquises – com inúmeras qualidades morais, entre elas a “piedade”, pois Eneias, ao fugir de Troia, trouxe consigo os “Penates”, deuses dos lares, para fundar uma nova cidade que daria origem à futura Roma.

Tito Lívio não ignora a tradição e inicia o seu relato sobre a História de Roma com a chegada de Eneias à Itália.

No canto VIII, quando Virgílio descreve o escudo de Eneias, o poeta apresenta uma espécie de “máquina do tempo”, compondo uma linhagem histórica entre Eneias e Rômulo, prosseguindo com os principais personagens romanos até Otaviano Augusto.

Tito Lívio também descreve, no Livro I, capítulo 3, embora não de forma tão bela quanto Virgílio, uma linha genealógica desde Eneias até Rômulo e Remo, fundadores de Roma.

“Acalma-te, Citereia; imutáveis encontram-se os Fados.
Ainda verás a cidade e as muralhas da forte Lavínio,
como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Eneias
de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento.
Mas, uma vez que tais cuidos te agitam, tomando de longe
vou revolver o futuro e os arcanos do Fado mostrar-te.
Guerras terríveis ele há de enfrentar, povos de ânimo fero
domar no jugo, a seus homens dar leis e cidades muradas,
quando, três anos corridos, estios e invernos gelados,
reinar no Lácio e abater a fereza dos rútulos fortes.
Seu filho Ascânio – cognome de Iulo lhe foi acrescido
(foi Ilo enquanto sabia-se de Ílio e da sua presença) –
governará por trinta anos, um mês depois do outro, a cidade,
e a capital de Lavínio, seu reino, aumentando de muito,
para Alba alfim mudará, guarnecida de grandes muralhas.
Neste domínios a gente de Heitor manterá o comando
trezentos ano, até a princesa Ília, sacerdotisa,
de Marte grávida, à luz há de dar os dois gêmeos preditos.
Rômulo, então, mui vaidoso da pele fulgente da loba,
dominará nestes povos e, o burgo mavórcio erigindo
de fortes muros, seu nome dará aos romanos ditosos.
Prazo nem metas imponho às conquistas do povo escolhido.
Dou-lhes Império sem fim.” (EN, I, v. 257-279) 9

Nos versos acima, Júpiter responde às queixas de Vênus sobre os prolongamentos das aflições dos troianos e, principalmente, de seu filho Eneias, pois o destino já previra que eles dariam origem ao povo romano. Júpiter acalma Vênus, confirmando o futuro de Eneias: o herói enfrentaria ainda guerras terríveis – referência ao livro VIII da “Eneida” –, antes de reinar sobre o Lácio; seu filho, Ascânio, reinaria por trinta anos seguidos a capital de Lavínio, antes de fundar Alba Longa, onde seus descendentes se manteriam no comando por mais trezentos anos; e que haveria de chegar o tempo em que a família dos Júlios, os romanos descendentes de Eneias, dominariam os Gregos. Ele menciona, posteriormente, a “Pax Romana”, período no qual viviam o Imperador Augusto e o poeta Virgílio. 10

Quanto ao verso de Virgílio “até aos astros o nome elevar-se de Eneias” é uma referência à tradição da “Apoteose de Eneias”, a qual foi belamente registrada pelo poeta Ovídio:

“Já do piedoso Enéias a virtude
Enternecera os deuses, extinguira
Da própria Juno a malquerença idosa.
E, firme a herança do crescente Ascânio,
Repouso ao pai cabia, era já tempo
De ir lograr-se dos céus o herói troiano.
Vênus por ele interessara os numes,
E de Jove abraçando o colo augusto:
“Pai, nunca repugnante a meus desejos,
De teu amor (lhe diz) o extremo apura,
Clementíssimo atende às preces minhas.
Meu caro Enéias, que é por mim teu neto,
Grau de nume inferior alcance ao menos.
De algum modo nos céus meu filho admite.
Bem lhe basta uma vez entrar no reino
Onde é tudo aversão, tristeza tudo,
E haver passado por estígias ondas.”
Soou a aprovação dos deuses todos,
Nem Satúrnia ficou de aspecto imóvel,
Antes afável anuiu ao rogo.
Então lhe disse o pai. “Sois dignos ambos
Tu, e teu filho da celeste graça.
Cumpre o desejo enfim.” – Calou-se Jove.
Com vozes gratas a exultante deusa
A mercê retribui, e, conduzida
Nas auras leves pelas níveas pombas,
Desce à margem Laurente, onde serpeia
O Numício, de canas assombrado,
Levando ao mar vizinho as vítreas águas.
A linda Citeréia ordena ao rio
Que tudo o que é da morte a Enéias lave,
E em silêncio no mar depois esconda.
As ordens o deus úmido executa;
Tudo quanto é mortal extrai de Enéias,
E co’a pura corrente o volve puro:
A parte só que é ótima lhe deixa.
Eis a amorosa mãe o aromatiza,
Unge de óleo divino o corpo amado,
Honra-lhe os lábios de ambrosia e néctar,
Deus o faz, que dos povos de Quirino
Indigete é chamado, e sobe às aras.” 11

Na descrição de ambos os poetas, Eneias, pelos seus feitos e suas virtudes, é divinizado. Tito Lívio, ao relatar a morte de Eneias, sem confirmar ou negar a fábula, faz uma breve referência a essa tradição.

Analisaremos agora, por exemplo, a forma como Virgílio descreve a figura de Eneias num momento decisivo do início da batalha contra Turno e seus aliados:

“Arde a cimeira de Eneias na bela cabeça, o penacho
chamas emite sem pausa; o broquel longe fogo irradia.
Não de outro modo na noite serena enrubesce um cometa
sanguinolento o céu vasto, ou na triste estação em que Sírio
abrasador sede ardente conduz para os homens e doenças,
de luz sombria abafando o conspecto risonho da terra.”

Segundo o poeta, uma chama divina queimava sobre a cabeça de Eneias, presenciada por todos os que estavam próximos, semelhante à chama que aparecera em seu filho Ascânio, no livro I de Eneida, quando os deuses anunciavam o caminho da fuga aos troianos. Sinais no céu também revelavam a sua origem divina: um cometa e a estrela brilhante da constelação de Sírio.

Quanto ao papel dos deuses em relação ao destino do herói, Virgílio, no livro X de Eneida, sugere que os deuses nada podiam fazer, pois assim os determinaram os “Fados”. Virgílio, insere aqui, de certa forma, um aspecto teológico da “providência”. Isso reforça a posição de Aristóteles quando afirma que a “Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História”. O poeta, em seus versos, consegue apresentar aspectos profundos filosóficos e teológicos, muito mais que o que é possível num discurso de historiografia.

Em um dos poemas da obra “Os Fastos”, de Ovídio (na tradução portuguesa de Antonio Feliciano de Castilho), o poeta menciona a intervenção das Sabinas na guerra. Os primeiros versos referem-se à fala de Hersília, esposa de Rômulo para outras mulheres sabinas:

“‘Vós a quem tocou sorte igual a minha,
vós que amante violência há feito esposas;
ó donas atendei-me: a inércia nossa
já degenera em bárbara impiedade.
Eis em campo os exércitos: aos numes,
donas, por qual dos dois faremos preces?
D´além temos o pai, d´aqui, o esposo!
Quereis viúvas ser? Quereis ser órfãs?
É forçado escolher, mas quem o ousará?
Segui pois o meu conselho: é nobre, é pio.’ 12

Na sequência do poema, Ovídio relata as consequências da intervenção das sabinas:

“Deu-lhe-o, aprouve, cumpriu-se: eis se desgrenham,
eis de funéreo luto se carregam.

Face a face os exércitos postados
aguardam, que a trombeta horrisonante
de um pregão de investir; ei-las as armadas
dos filhinhos gentis, que ao seio apertam,
acorrem a interpor-se a pais, e esposos.
Ali curvo o joelho, ali prostradas,
solto o cabelo, a compaixão presentam
os de amor e himeneu mimosos frutos.
Notai como os bracinhos cor de leite
alçam para os avós que nunca viram,
e no infantil clamor, suave, ingênuo,
inexpertos do mal senti-lo inculcam.
Chama ‘avô’ ‘avô’ os que já falam;
e os que mal podem a poder se obrigam.
Caem rendidos ânimos e lanças;
espadas para longe se arremessam;
sogros, genros, as mãos se dão, se tomam.
Mais formosas de glória as heroínas
nos braços paternais seu prêmio colhem;
E os avós, convertendo o escudo em berço,
levam nele com sôfrega ufania
de suas filhas as ridentes cópias.”

 

O poeta confere um papel elevado às Sabinas para o término da guerra entre os romanos e os sabinos. Elas foram as grandes heroínas: carregaram seus filhinhos à frente dos seus corpos, como escudos, para que seus pais e maridos cessassem a guerra e compreendessem que o futuro de ambos estava unido em função do futuro de seus filhos e netos. Em seu relato deste episódio, Tito Lívio concede um papel secundário às sabinas, mencionando apenas um breve discurso de Hersília:

“Se este parentesco, se este casamento vos desagradam, é contra nós que se deve voltar vossa cólera, Nós é que somos a causa da guerra, dos ferimentos e da morte de nossos maridos e de nossos pais. Antes morrer do que sobrevivermos a uns e outros, ficando viúvas e órfãs!”

Quanto à morte de Rômulo, Ovídio também faz narração belíssima em seu poema “Apoteose de Rômulo e Hersília”:

“Tácio morrera, e Rômulo aos dois povos
Equilibrava as leis, quando Mavorte
Dos mortais e imortais ao rei supremo
(Deposto o morrião) falou destarte:
“O tempo é vindo, ó pai (porquanto Roma
Em robusto alicerce está segura,
E um só braço a modera), é vindo o tempo
Em que alto galardão, promessa antiga
A mim, teu filho, a Rômulo, teu neto,
Credor do grande prêmio, se efeitue,
E o destinado ao céu se roube à terra.
No conselho dos deuses tu outrora
Me disseste, senhor: (e o pio anúncio
Gravei no coração, gravei na mente)
– Erguido aos céus por ti será teu filho: –
Ratifica a palavra sacrossanta.”

Ao guerreiro anuiu o onipotente;
Os ares condensou de opacas nuvens,
No raio, no trovão pôs medo à terra.
O impávido Gradivo, à luz, e estrondo,
Vê que é dado o sinal do rapto augusto,
E, firmado na lança, ao carro salta.
Brutos, opressos de temão sangüento,
O sonoro flagelo açoita, esperta.
Dirigindo-se o deus por entre os ares,
Pára no Palatino, umbroso cume,
E ao filho, que ali julga os seus Quirites,
Arrebata dali co’a mão nervosa.
Nas auras se lhe vai quanto é da morte,
Qual a plúmbea porção que sai da funda
Seu ressumante humor perde voando.
Toma o romano herói radiosa face,
Face mais digna da morada eterna,
Tal como a que se vê na purpurada
Imagem de Quirino, imagem sua.

Por morto o claro esposo Hersília chora:
Eis dos céus a rainha ordena a Íris
Que baixe ao mundo, e que à viúva excelsa
Estas benignas vozes pronunce:
“Ó da gente sabina e lácia gente
Honra primária, singular matrona,
Já digna esposa dum varão sublime,
Do deus Quirino agora esposa digna!
Não chores: se teu ínclito consorte
Morrendo estás por ver, segue-me os passos,
Comigo ao bosque vem, que lá verdeja
No cimo Quirinal, e assombra os lares
Do monarca romano.” – Íris submissa
Pelo arco imenso de vistosas cores
Desce rapidamente: ei-la na terra,
E o que ela a Juno ouviu lhe escuta Hersília.

“Ó deusa! (proferiu a alta matrona,
De pejo os olhos elevando apenas)
Qual delas és não sei, mas sei que és deusa:
Não cabe esse esplendor a um ente humano.
Guia, ah! Guia-me a ver o ausente esposo:
Se olhá-lo inda uma vez me dais, ó Fados,
A presença dos céus terei na sua.”
Nisto ao Romúleo monte se encaminha,
E leda o sobe co’a Taumântia virgem.
Súbito, das estrelas despegado,
Vem direito à montanha etéreo lume;
Os cabelos de Hersília toca, inflama,
E com ela após si revoa aos astros.
De Roma o fundador nos céus a acolhe;
Muda-lhe o corpo antigo, o antigo nome,
Hora lhe chama, e de Quirino ao lado
Goza com ele dos romanos cultos.” 13

Nos versos “A mim, teu filho, a Rômulo, teu neto, Credor do grande prêmio, se efeitue / E o destinado ao céu se roube à terra.”, Marte se dirige a Júpiter falando da morte iminente de Rômulo e de seu desejo de recebê-lo nos céus com honras divinas. Já nos versos “Toma o romano herói radiosa face, Face mais digna da morada eterna, Tal como a que se vê na purpurada Imagem de Quirino, imagem sua”, Rômulo é divinizado e passa a ser chamado de “Quirino”. Juno, a deusa do matrimônio se compadece do sofrimento de Hersília, após a morte de Rômulo, e também lhe concede acolhimento ao lado de Quirino e com ele a partir de então, “goza dos romanos cultos”.

Tito Lívio assim relata a morte misteriosa de Rômulo:

“Após essas atividades gloriosas, um dia em que Rômulo realizava uma assembleia no campo perto do pântano da Cabra, para passar em vista as tropas, desabou repentinamente uma violenta tempestade acompanhada de trovões e névoa tão espessa que ocultou o às vistas da assembleia. Desde então Rômulo não apareceu mais na terra. Refeitos do medo, com a volta de um dia sereno e calmo após a tempestade, os jovens romanos viram o trono real vazio. Embora confiassem nos senadores que haviam estado junto do rei e que afirmavam ter sido ele arrebatado pela tempestade, os jovens ficaram amedrontados como se tivessem perdido um pai, e permaneceram algum tempo tristes e silenciosos. Logo depois, seguindo o exemplo de alguns, começaram a gritar vivas em honra de Rômulo, como a um deus, filho de um deus, rei e pai da cidade de Roma, e imploraram sua proteção suplicando-lhe que velasse por seus descendentes”.

Na sequência, Tito Lívio, sugere uma interpretação possível a este evento: que os próprios senadores houvessem assassinado Rômulo. Aqui novamente, Tito Lívio insere o fabuloso em seu relato histórico e acrescenta a narrativa da “probabilidade interpretativa do mito”.


8 – VIRGÍLIO. Eneida. São Paulo: Editora 34, 2021, p. 72-73.
9 – Ibidem, p. 92-93.
10 – Virgílio (70 a.C – 19 a.C.), Tito Lívio (59 a.C – 17 d.C) e Ovídio (43 a.C. – 19 d.C) viveram sob o governo
do Imperador Augusto (63 a.C – 14 d.C).
11 – OVÍDIO, Públio Naso. Metamorfoses. Porto Alegre: Concreta, 2016, p. 314-319.
12 – OVÍDIO. Os Fastos. (tradução em verso português, por Antonio Feliciano de Castilho) Lisboa, 1889. Livro II, p. 25,27, 29.1.
13 – OVÍDIO, Públio Naso. Metamorfoses. Porto Alegre: Concreta, 2016, p. 320-327.


Leia a série completa:
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte I
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte II
O discurso histórico e poético e sua função pedagógica – Parte III

Vias Clássicas Valorizando o Conhecimento