Aristóteles distingue a poesia e a história, sendo, a primeira, um meio de enunciar verdades gerais sobre a humanidade, de prever como um homem de natureza tal venha a agir ou dizer, e, a última, como um relato de fatos particulares. O labor do poeta não consiste em narrar os fatos, mas coisas que poderiam acontecer, ou seja, possíveis no ponto de vista da verossimilhança. Justamente por isso, Aristóteles afirmava que a “a poesia encerra mais filosofia e elevação que a história”(1).
Neste ensaio, perquiriremos a historiografia clássica, o modo como os historiadores da antiguidade compreendiam a finalidade da História e os diferentes métodos adotados. Devemos aqui entender, quando abordamos o relato histórico na antiguidade, que este, no princípio era feito de forma oral pelos poetas. Somente com o surgimento da escrita é que começou a distinção entre a narrativa histórica e a poética.
Para fim desta análise, selecionamos a obra de três historiadores: (1) Tucídides, (470-400 a.C), (2) Políbio (203 – 120 a.C) e (3) Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C). Para nossa investigação, analisaremos o primeiro livro de Tucídides, os livros de primeiro a quinto de Políbio e o primeiro livro de Tito Lívio.
Tucídides
Tucídides, ilustre historiador e general ateniense, foi testemunha direta da Guerra do Peloponeso, um confronto entre Esparta e Atenas durante o século V a.C. Para Tucídides, esse embate foi o mais significativo até então, superando até mesmo a célebre Guerra de Troia. Em seus oito volumes dedicados a detalhar esse conflito bélico, é notável o seu compromisso com a precisão e a meticulosidade ao descrever os acontecimentos de forma fiel e assertiva, diferenciando-se pela abordagem desprovida de Mitos e Fábulas ao relatar os eventos históricos.
“À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os fatos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando os seus temas e, de outro, considerando que os logógrafos compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade.”(2)
Tucídides, ao narrar a Guerra de Troia, segue sua premissa de excluir todo o relato fabuloso. Na obra de Homero, o relato fabuloso tem o objetivo de incluir tanto um aspecto teológico, religioso, quanto um ensinamento moral.
Quando Tucídides cita os “logógrafos”, refere-se principalmente a Heródoto, pai da história. Heródoto em seu relato histórico, incluía o fabuloso, como então era narrado pela tradição oral. Quanto aos poetas, no Livro I, cita o exemplo de Homero, e sua descrição da guerra de Troia. A quantidade de naus, homens e recursos descritos por Homero é muito maior que a capacidade que as tropas Hélades tinham nessa época, afirmando que se esses números fossem factuais, boa parte da cidade dos lacedemônios estaria despovoada.
“O razoável, portanto, não é ser incrédulo ou levar em conta a aparência das cidades ao invés de seu poder, mas crer que a expedição a Troia haja sido maior que qualquer das anteriores, apesar de menor que as do presente, se aqui novamente se pode dar crédito à poesia de Homero.”(3)
Até os historiadores mais antigos costumavam utilizar fontes secundárias ao narrar um evento:
“Segundo as minhas pesquisas, foram assim os tempos passados, embora seja difícil dar crédito a todos os testemunhos nesta matéria. Os homens, na verdade, aceitam uns dos outros relatos de segunda mão dos eventos passados, negligenciando pô-los à prova, ainda que tais eventos se relacionem com sua própria terra.”(4)
Para Jaeger (1965) “Tucídides é o criador da história política”(5). Segundo o autor, Tucídides contemplou pela primeira vez a força da vida política em Atenas após as guerras pérsicas. Foi justamente no relato da Guerra do Peloponeso que Tucídides pôde expressar a intensidade política no meio ateniense. Não é que a história se torne política, é o pensamento político que se torna histórico. Eis a essência do fenômeno espiritual que encontra a sua realização na obra de Tucídides.
Foi também na obra de Tucídides o primeiro relato histórico a abordar a questão do direito internacional, referente ao tratado acordado entre Atenas e seus aliados com Esparta e seus aliados, pois o motivo alegado para o início da guerra foi justamente o rompimento deste tratado.
Tucídides diz que a história se repete, e deve ser tratada como a mestra da vida, como um meio de aprender com os erros dos homens para não cometê-los novamente:
“Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio.”(6)
Políbio
Políbio veio ao mundo em uma família nobre por volta de 203 a.C., filho de Licortas, um influente líder da Liga Aqueia. Desde tenra idade, ele foi mergulhado em uma instrução literária e filosófica adequada à sua linhagem. Contudo, sua infância e adolescência possivelmente foram tumultuosas, uma vez que foi nesse período que a Liga Aqueia se envolveu em conflitos, como a disputa com a Liga Etólia e os embates com Antíoco III. Esses eventos não apenas moldaram o contexto histórico em que Políbio cresceu, mas também o instigaram a começar sua notável jornada como historiador e geógrafo.
Em contraste com Tucídides, cujo trabalho se focalizou em um evento histórico monumental, o Conflito do Peloponeso, o geógrafo e historiador greco-romano Políbio adotou uma abordagem mais ampla com sua obra “Histórias”, que pode ser vista como uma narrativa abrangente da história universal. Nesse trabalho, Políbio não se limitou a um único evento, mas traçou a história do Mar Mediterrâneo e do mundo até então conhecido. Políbio viveu a época em que a Grécia se tornou uma região do império romano. Assim, Políbio redigiu sua obra com o objetivo de mostrar que a dominação da Grécia Antiga e o ascendimento de Roma eram inelutáveis.
O autor afirma que muitos antes dele já asseguravam “que a aprendizagem da história resulta na formação e preparação para a atividade política”.7 Segundo ele, o assunto que se propõe a relatar em sua obra é, por si, suficiente para atrair e estimular qualquer pessoa a lê-la, pois só os tolos e negligentes não se interessariam em saber os motivos políticos que levaram à derrota da Grécia e sua submissão a Roma.
Um dos objetivos de Políbio é esclarecer aos estudiosos quais características da história política levaram Roma ser tão grandiosa, sugerindo uma certa inevitabilidade da submissão da Grécia a Roma:
“A peculiaridade do nosso trabalho e a maravilha da nossa época consiste nisto: segundo a Fortuna ela inclinou praticamente todos os acontecimentos do mundo para um lado e os forçou a tender para um fim único e único, da mesma forma também é preciso, valendo-se da história, para concentrar sob um único ponto de vista sinóptico, para benefício dos leitores, o plano que a Fortuna utilizou para cumprir todos os acontecimentos. O que acabo de constatar é o que mais nos impulsionou e estimulou a dedicar-nos à história, e também, além disso, o fato de ninguém, entre os nossos contemporâneos, ter empreendido a preparação de uma história geral”. (8)
Em sua defesa da opção por escrever uma História Universal do mundo conhecido (povos próximos ao Mar Mediterrâneo), Políbio diz que só é possível um real entendimento de tudo que tornou propícia e inevitável a grandiosidade de Roma – segundo a Fortuna –, com o estudo do entrelaçamento de diferentes fatos históricos ocorridos antes e durante o período em que ele escreve. Ao estudarmos apenas fatos isolados, não poderíamos ter uma real compreensão do todo.
Políbio parece seguir o princípio de Tucídides ao evitar mencionar as fábulas no relato histórico. Mesmo assim, não desassocia do relato da história humana a intervenção do sobrenatural ao mencionar diversas vezes a ação da Fortuna.
Ao descrever a história dos povos próximos ao Mediterrâneo, também enfatiza os aspectos geográficos no relato histórico. Políbio, assim como Tucídides, se preocupa com a averiguação dos fatos. São três os elementos principais que compõem a autoridade de um historiador para Políbio: (1) a pesquisa em documentos e consulta a testemunhas, (2) a experiência política e militar, sobre a qual Políbio pode alegar autoridade devido à sua formação e experiência, (3) o conhecimento do espaço geográfico.
Políbio também se preocupa em relacionar causa e efeito em seu relato histórico. O autor demonstra a ação fundamental da Fortuna no relato da História da Humanidade. Segundo o autor, a força responsável pela junção lógica e ordenadora dos fatores que proveram a condição ideal para que Roma se expandisse e dominasse o mundo. O autor sugere também que a “Fortuna” recompensa aqueles que, por suas ações, o fazem por merecer. Em seu relato, ele explica que os romanos, desde o início de sua história, eram belicosos e tinham o propósito de expansão e conquista de outros territórios, sendo assim, inevitável que se tornasse a maior potência do Mediterrâneo.
Tito Lívio
Tito Lívio, historiador romano, é autor da obra “Ab urbe condita” (Desde a fundação da cidade), onde tenta relatar a história desde o desembarque de Eneias a Itália, assim como o momento tradicional da fundação de Roma, 753 a.C., até o início do século I antes da Era Cristã. Analisaremos o livro I que relata a história de Roma desde sua fundação até o fim do período monárquico.
Acerca dos mitos e tradições ao longo da história de Roma, Tito Lívio prefere não confirmá-las, nem negá-las. Na sua opinião, seria basilar o estudo da vida e dos costumes da Roma Antiga, o labor dos homens que, tanto em tempos pacíficos quanto bélicos, se empenharam para altear e expandir a civilização romana. Em seguida, seria indispensável observar como o lento, mas progressivo afrouxamento da disciplina acarretou na decadência e no relaxamento dos costumes e, ulteriormente, na queda brusca de Roma em seus dias.
É notável como Tito Lívio segue sua premissa de que o estudo das fábulas, os costumes e a História são inseparáveis, apesar de não confirmar nem negar a veracidade do primeiro. Ele inicia sua narrativa com a chegada ao território laurentino do herói troiano, filho de Anquises e a deusa Vênus, Eneias, sugerindo aqui a nobre origem primitiva, cujos descendentes diretos fundariam a cidade de Roma. Tito Lívio acrescenta o relato fabuloso quando, por exemplo, descreve a paternidade, a criação de Rômulo e Remo, e a morte de Rômulo. Vítima de violação, a vestal Reia Silvia deu à luz a gêmeos e, fosse por boa-fé, fosse para enobrecer sua falta atribuindo-a a um deus, responsabilizou Marte como o autor daquela paternidade suspeita. Assim, o caráter belicoso de Roma já é explicitado desde suas mais remotas origens, com Rômulo e Remo.
A seguir, Tito Lívio narra como a tradição conta que Rômulo e Remo, após serem jogados dentro de um cesto no Rio Tibre por seu tio Amúlio, foram resgatados e alimentados por uma loba até serem encontrados pelo pastor Fáustulo. Uma possível interpretação desta loba, segundo o autor, seria que a esposa de Fáustulo, Larência, seria uma prostituta, pois assim eram elas chamadas naquela época. Ao relatar a morte de Rômulo, o autor descreve tanto o que narrava a tradição, ou seja, a “Apoteose de Rômulo”, na qual Rômulo havia desaparecido misteriosamente em meio a uma tempestade com raios e trovões, como que por meio de intervenção divina; ao mesmo tempo, que adiciona uma interpretação ao mito, sugerindo que Rômulo havia sido assassinado pelos senadores.
Logo nos primeiros capítulos do Livro I, o autor indica que o “costume”, ou seja, a inclinação do caráter romano à belicosidade e a religiosidade, foram instaurados no início da história de Roma: o primeiro se deveria a Rômulo, que ensinou aos romanos o modo de defender seu território e vencer seus opositores; o segundo, ao governo de Numa Pompílio, que assumiu a direção de Roma após a morte de Rômulo. Foi Numa quem estabeleceu os ritos religiosos e deu um desígnio aos romanos em tempos de paz.
O sobrenatural no relato histórico
Os três historiadores da antiguidade que aqui foram objeto de estudo compreendem a História como “Magistra Vitae”, ou seja, atribuem uma função educadora ao relato histórico. Tucídides, ao descrever o seu objetivo com o relato da Guerra do Peloponeso, afirma que “quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará.”
Políbio, por sua vez, enfatiza a função educadora ao afirmar que “a aprendizagem da história resulta na formação e preparação para a atividade política”. Tito Lívio, também reforça a função educadora da História enfatizando principalmente “a vida e os costumes da Roma Antiga” e, ao analisarmos o primeiro livro, é clara a sua intenção de influenciar os romanos de sua época quanto aos valores morais e os costumes estabelecidos desde os primórdios de Roma, que, infelizmente já havia cedido à corrupção dos costumes e se inclinado sob o peso da própria grandeza.
Quanto à ausência ou presença do fabuloso no relato histórico, Tucídides omite-a propositalmente, indicando que a sua menção seria nociva; Políbio, não enfatiza o fabuloso mas sugere a influência constante da “Fortuna” na história da humanidade; Tito Lívio, ao relatar o fabuloso, não afirma e nem o contesta, mas inclui possíveis interpretações ao relato mítico e, de certa forma, ao incluir a fábula, sugere elementos constituintes do caráter romano; por exemplo, ao relacionar a paternidade Rômulo a Marte, fica implícita uma certa etiologia divina da belicosidade do povo romano.
Ao analisarmos a História da Humanidade sob a luz do Cristianismo, não é possível compreendê-la sem a influência do sobrenatural. Segundo Dom Prosper Guéranger “o homem foi divinamente chamado ao estado sobrenatural; este estado é o fim do homem, e os relatos da humanidade devem oferecer um rastro dessa realidade.”(9)
Sabemos também, que ao homem foi dado o livre-arbítrio e, como bem explicou Boécio em sua obra “Consolação da Filosofia”, o livre-arbítrio não é incompatível com a ação da Providência, algo verificável desde a Criação Divina do primeiro homem e da primeira mulher, e em todos os seres humanos, que têm sua alma ligada ao corpo na sua concepção. Por isso, se torna impossível ignorar aspectos da influência da Providência na história da humanidade, tanto anterior ao advento do Cristianismo, como em nossa própria época. É inegável que o elevado raciocínio filosófico grego e sua constante busca ao conhecimento da Verdade também são sinais da benevolência da Providência. Como sugere Políbio, há um fator sobrenatural na formação do grande Império Romano, na forma como Roma se tornou notável no desenvolvimento e na organização de seu território. Ao mesmo tempo, esse império colossal foi também uma preparação para o caminho do “Verbo Encarnado”. Dom Guéranger, afirma que o Império Romano serviu de “pedestal” para o Império de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sendo assim, me parece que todo esforço de omitir o relato sobrenatural na história da humanidade a torna, de certa forma, incompleta e imperfeita.
Referências:
1 – ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. São Paulo, Cultrix, 2014, p.28-30.
2 – TUCÍDIDES. Guerra do Peloponeso. Livro I, 21.
3 – Ibidem. Livro I, 10.
4 – Ibidem. Livro I, 20.
5 – JAEGER. Werner. Paidéia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 441.
6 – TUCÍDIDES. Guerra do Peloponeso. Livro I, 22.
7 – POLÍBIO. Historias Libros I-IV. P.27. Disponível em: https://dn720001.ca.archive.org/0/items/polibio-u-
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2%20Historias%20%28Libros%20I-IV%29.pdf.
8 – Ibidem. P. 30.
9 – GUÉRANGER, Dom Prosper. O sentido católico da história. São Paulo: Castela, 2020, p.21.