Comentário aos Livros I e II da “Eneida”, de Virgílio

O Livro I da Eneida divide-se em três partes principais: o proêmio, a viagem de Eneias e o desembarque em Cartago. O proêmio, conforme exposto no artigo anterior, apresenta a invocação e a proposição do poema. A invocação é um recurso usado pelos poetas antigos para pedir inspiração divina às Musas, filhas de Júpiter e da Memória, para que melhor cantem os grandes feitos narrados no poema. Já a “proposição” é o meio pelo qual o poeta apresenta o tema central do poema.

A segunda parte corresponde aos versos 34 a 156 e narra as tribulações de Eneias e seus companheiros da Sicília a Cartago, durante o sétimo ano de peregrinação, para fundar a Itália. Navegando pelo Mediterrâneo, a frota se depara com uma tempestade enviada por Éolo, deus dos ventos, a mando de Juno, esposa de Júpiter, que, mesmo após a destruição de Troia, continua odiando os troianos devido à escolha de Páris. Juno convenceu o monarca dos ventos oferecendo-lhe a bela ninfa Deiopeia. Com a tempestade, a frota se dispersa e um navio vai a pique. Nos versos 55 a 57, Virgílio belamente usa aliteração e prosopopeia para descrever a caverna, onde estariam presos os ventos:

“Bramam os ventos em torno à prisão, e a montanha retumba
com a turbulência dos presos. Sentando na rocha altaneira
Éolo se acha com o cetro, seus brios aplaca e tempera.”

Netuno, senhor dos mares, percebendo a desordem em seu reino, repreende e manda embora Euro e Zéfiro, apaziguando a procela. O poeta usa características humanas para descrever elementos da natureza; por exemplo, no verso 149, a expressão “povinho sem brio” refere-se aos ventos.

A terceira parte do Livro I situa-se entre os versos 157 e 756. Com sete navios, os troianos aportam justamente em Cartago, na costa africana, onde desembarcam. Eneias acalma os companheiros, sacrifica sete cervos. Todos ceiam e, então, choram a morte dos companheiros. Vênus, mãe de Eneias, se queixa a Júpiter do infindável sofrer do filho, ao que ele prontamente a acalma – versos 257 a 269 –, ratificando-lhe a profecia do futuro grandioso para Eneias e para Roma:

“Acalma-te, Citereia; imutáveis encontram-se os Fados.
Ainda verás a cidade e as muralhas da forte Lavínio,
como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Enéias
de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento.
Guerras terríveis ele há de enfrentar, povos de ânimo fero
domar no jugo, a seus homens dar leis e cidades muradas,
quando, três anos corridos, estios e invernos gelados,
reinar no Lácio e abater a fereza dos rútulos fortes.”

Nos versos acima, “Citereia” designa Vênus. O terceiro verso é uma referência à Apoteose de Eneias, belamente descrita por Ovídio na sua obra Metamorfose. “As guerras terríveis” são narradas a partir do canto VII de Eneida.

Júpiter afirma que os descendentes de Eneias governariam Alba Longa por cerca de trezentos anos, quando finalmente nasceriam os gêmeos Rômulo e Remo. “Sacerdotisa” refere-se a Reia Sílvia, mãe de Rômulo e Remo. “Burgo Mavórcio” refere-se a Roma, que seria demarcada por Rômulo e Remo, e governada por Rômulo. Quando Júpiter clama “Dou-lhe impérios sem fim” está profetizando a grandiosidade do Império Romano:

“Seu filho Ascânio — o cognome de Iulo lhe foi acrescido
quando ainda no orbe sabia-se de ílio e da sua presença —
governará por trinta anos, um mês depois do outro, a cidade,
e a capital de Lavínio, seu reino, aumentado de muito
para Alba alfim mudará, guarnecida de grandes muralhas.
Nestes domínios a gente de Heitor manterá o comando
trezentos anos, até que a princesa Ília, sacerdotisa,
de Marte grávida, à luz há de dar os dois gêmeos preditos.
Rômulo, então, mui vaidoso da pele fulgente da loba,
dominará nestes povos e o burgo mavórcio erigindo,
de fortes muros, seu nome dará aos romanos ditosos.
Prazo nem metas imponho às conquistas do povo escolhido.
Dou-lhes impérios sem fim.”

Virgílio usa do recurso da “Máquina do Tempo”, fazendo que o leitor de sua época se reconheça no discurso, pois foi justamente nesse período que os romanos dominaram militarmente a Grécia. “César de Troia” se refere ao imperador Otaviano Augusto, que, em 27 a.C, anexou a Grécia como província do Império Romano. Otaviano Augusto é descendente da família “Júlia”, que segundo o poeta, originou-se em Eneias. Quando o vate canta “Rico de espólios do Oriente”, ele está se referindo à última guerra civil promovida por Otaviano Augusto contra Marco Antônio e Cleópatra. No último verso, “Então, suspensas as guerras, aquietam-se os ásperos sec’los”, referindo-se à futura Pax Romana:

“… Há de a idade chegar, na carreira dos lustros,
em que a família de Assácaro à ilustre Micenas e Ftia
dominará, e sobre os Argos vencida há de impor o seu jugo.
César de Troia, de origem tão clara, até as águas do Oceano
vai estender-se; sua fama há de aos astros chegar dentro em pouco.
Do claro nome de Iulo provém o cognome de Júlio.
Livre do medo infundado, hás de um dia no Olimpo acolhê-lo,
Rico de espólios do Oriente. Invocado vai ser pelos homens.
Então, suspensas as guerras, aquietam-se os ásperos sec’los.”

Em seguida, Júpiter envia Mercúrio a Cartago para garantir que os troianos sejam lá bem acolhidos. Enquanto Eneias faz explorar o lugar, Vênus manifesta-se-lhe sob a forma de caçadora, assossegando o filho quanto ao país e sua rainha, Dido. Numa efêmera analepse, Vênus descreve a Eneias e aos leitores, a situação política do novo reino, que Dido fundou ao fugir da cidade fenícia de Tiro, depois de Pigmalião, seu irmão, ter assassinado seu marido, Siqueu, para usurpar-lhe o trono. Após o herói dizer a que viera, a deusa informa-lhe que o restante da frota está a salvo, e então parte, depois de envolver, porém, Eneias e seus companheiros em névoa que os fez invisíveis, a fim de que chegassem seguros ao templo de Juno. Ali, os leitores, ao lado de Eneias, podem contemplar uma das mais belas passagens da poesia antiga.

Eis que a rainha e seu séquito chegam ao templo, onde ela preside os trabalhos de erigir Cartago. O herói, ainda invisível, vê chegar também os companheiros que julgava perdidos, entre os quais Ilioneu, que, após relatar à rainha a fuga de Troia e a procela, pede-lhe acolhida. Ela lhes concede e convida-os até a compartilhar do seu reino. Quando ela afirma desejar que Eneias ali estivesse, espetacularmente ele se revela, com a divinal beleza de que Vênus o ornara, e apresenta-se a Dido.

Encontro de Eneias e Dido, 1766 Sir Nathaniel Dance-Holland 1735-1811

Dido, espantada, após recebê-lo, leva-o ao palácio, onde lhe oferece um banquete. Eneias, pai cuidadoso, manda buscar o menino Ascânio aos navios, quando Vênus, inquieta, ordena a Cupido, também seu filho, que assuma o feitio e o posto de Ascânio para que, com seu poder, contagie a rainha de paixão por Eneias. Dido, já tocada da peste, pede a Eneias que relate, ele mesmo, todos os infortúnios desde o último dia de Troia. Assim Dido, de caçadora, se torna caça de Cupido.

No segundo livro, o vate narra os momentos termos da cidade de Troia e o falecimento de Príamo. O cavalo, astutamente alojado com soldados gregos, desperta tanto admiração quanto medo. Alguns, como Timetes e Sinão, o falso, clamam por derrubar as paredes para aceitar o cavalo, enquanto outros, como Cápis, Cassandra e o sacerdote de Netuno, Laocoonte, percebem a armadilha, sendo que este último ataca com uma lança o ventre do cavalo.

Ao longo do segundo livro, Virgílio insere alegorias que contrastam entre “dia e noite”, “luz e cegueira”, “razão iluminada e irracionalidade”; deste modo assinalando que a queda de Ilion foi justamente a imprudência dos troas em não entrever os perigos, seguindo os próprios impulsos e paixões, em vez de escutar os alvitres dos sábios.

“Nisso Laoconte ardoroso, seguido de enorme cortejo,
Da sobranceira almedina desceu para a praia, e de longe
Mesmo gritou: ‘Cidadãos infelizes, que insânia vos cega?
Imaginai porventura que os gregos já foram de volta,
Ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, então, a tão ponto
desconheceis? Ou esconde essa máquina muitos guerreiros
Ou fabricada ela pro para dano de nossas muralhas,
E devassar nossas casas ou do alto cair na cidade.
Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo, troianos!
Seja o que for, temo os dânaos, até quando trazerem os presentes.”

A descida do sacerdote Laocoonte da almedina à praia, assim como, o aviso de Cápis, cujo nome significa “cabeça”, simbolizam a “inteligência iluminada” em contraste com Timetes, cujo nome significa “paixão, coração”, ou seja, a impulsividade.

Os argivos enviaram Sinão, cuja ardilosa retórica persuadiu os ilios a aceitarem o presente dos gregos. Laocoonte sacrificava um boi no altar de Netuno quando duas serpentes da ilha de Tênedo afloraram do mar, matando seus filhinhos e o próprio sacerdote. Esse fenômeno é compreendido como um castigo divino pelos atos do sacerdote, que incitara os troianos a trazer o presente dos gregos para dentro das muralhas.

Assegurados de que os inimigos fugiram, os dardânios celebram em euforia: embriagados de vinho, todos adormentam. Mas, ao alvorecer, a frota argiva retorna. Sinão liberta os guerreiros obductos dentro da máquina, que abrem as portas da cidade para os guerreiros de fora e, assim, o massacre começa. Eneias é visitado pela alma de Heitor, que lhe revela que Troia está perdida, cabendo a ele salvaguardar os Penates (pequenas estátuas que representavam os deuses dos lares) e partir para fundar uma nova Troia.

Os inimigos avançam para o palácio, de onde Cassandra é arrastada pelos cabelos. Enfurecidos com a cena, os troianos atacam os gregos mas, em menor número, a ação é infrutífera. Eneias, através de uma porta secreta, entra no palácio de Príamo.

O palácio real é só ruínas: ali, o herói resiste até que os gregos, finalmente, irrompem, incluindo o filho de Aquiles, o cruel Pirro, que encontra Príamo, o velho rei, rezando no altar junto com sua esposa e noras, mal conseguindo segurar suas armas. Ele lança a espada em seu filhinho pequeno, que ensanguentado, corre para os braços do monarca. Príamo, então, irritado, amaldiçoa Pirro, afirmando que ele não era digno de seu pai, Aquiles. O ancião lhe lança uma débil lança, à qual Neoptólemo responde enterrando-lhe uma espada no peito.

Eneias, saindo de Troia vislumbra Helena, a causa de toda a desgraça. Sente-se impelido pela ira a matá-la. Vênus o contém, asseverando-lhe que a queda de Troia fora vaticinada pelos deuses, e ordena-lhe que fuja com a sua família. O herói volta para casa em busca de seu vetusto pai, carregando-o nas costas, enquanto o progenitor leva consigo os Penates; ao lado, segura Ascânio, seu filho pequeno, pela mão, e é seguido por sua esposa, Creúsa que, infelizmente, se perde no caminho. Aqui o pai representa o passado e as tradições que Eneias deve preservar. Ascânio, que mais tarde fundaria Alba Longa, onde nasceu Rômulo, edificador de Roma, representa o futuro. Já Creúsa, o presente que o herói deve abnegar. Volta sozinho para procurá-la em casa, quando é visitado pela sombra de sua esposa, que o conforta, assegurando-lhe que tudo acontecera pela vontade dos deuses. Ao nascer da aurora, Eneias junta-se aos seus companheiros no monte Ida.