Quem tem mais? O que deseja menos

Ao examinarmos a sentença “Quem tem mais? O que deseja menos.”, precisamos compreender as possibilidades de significado dos verbos “ter” e “desejar”.

O verbo ter, por exemplo, apresenta mais de trinta sentidos ao consultarmos o léxico. Dentre os principais sentidos, salientamos: possuir, dispor, gozar, portar, conter, existir, vivenciar, contrair, receber, usar, guardar, precisar, considerar e manifestar. No contexto da frase, o melhor sentido de “ter” é o de “possuir”, “dispor”, “fruir” e “gozar”. Já “desejar”, indica apego a algo. Nesse sentido, quem possui mais alguma coisa, se apega menos a outra coisa. Os advérbios “mais” e “menos” denotam grau em vez de quantidade, da mesma forma que alguém pode ser mais rico, por possuir mais ouro e menos prata, em comparação a outra pessoa que possua menos ouro e mais prata, embora ambos tenham a mesma quantidade de metais preciosos.

Para que a sentença seja válida, o objeto que se possui ou o objeto que se deseja, não podem apresentar o mesmo sentido, mas sim, sentidos diferentes ou opostos. Provemos a validade dessa sentença ao analisarmos no que consiste a felicidade. Segundo Boécio, a felicidade é o bem supremo do homem; nesse sentido, o bem supremo não pode ser outro a não ser Deus. E qual é o fim último do homem? Sua finalidade consiste em buscar o bem, a felicidade. Segundo Santo Tomás de Aquino, o fim último do homem é o bem incriado, isto é, Deus, que só, pela Sua bondade infinita, pode satisfazer plenamente a vontade do homem.

Jean de Meun, Miniatura em um manuscrito do “De Consolatione Philosophiae”

Muitas vezes afirmamos ser felizes, por termos uma boa casa, um bom emprego, um bom carro, por usufruirmos de bens materiais. Mas, de fato, esses bens nos trazem a verdadeira felicidade? Deveras, os bens temporais podem ser simulacros da beatitude, isto é, da plena felicidade, mas é impossível que deles se constitua a beatitude pois, como explana o doutor angélico, procurando-as o homem para outro fim, a saber, a subsistência de sua vida, não lhe podem compreender o fim último; antes, para ele, se ordenam essas coisas como fim delas. Por onde, na ordenação da natureza, todos esses deleites são inferiores ao homem e para ele designados, e não o oposto.

Quando dizemos que os bens terrenos, materiais, não nos alcançam o nosso fim, não negamos que que uma pessoa rica possa alcançar a absoluta felicidade, desde que ela não se apegue desordenadamente aos seus próprios bens, e use-os como meios para fazer o bem e a caridade. Nessa percepção, quem tem mais felicidade, é aquele que se apega menos aos bens materiais e passageiros.

Da mesma forma, aquele que tem uma vida mais reta e virtuosa, é o que detesta os vícios e o pecado. Aquele que se agrilhoa aos vícios, é o que mais se aparta da verdadeira felicidade. E aquele que vivencia uma vida virtuosa, amando e adorando a Deus crendo em tudo que Ele revelou, cumprindo seus mandamentos, orando e pedindo a Sua ajuda, é quem herdará o Reino dos Céus, compartilhando do sumo bem.