A Arte da Música no Quadrivium

O Quadrivium, estágio superior das Artes Liberais, refere-se ao estudo das artes dos números, ou seja, da quantidade abstrata. Segundo o teólogo Hugo de São Vitor, podemos tipificar as quantidades em duas partes: uma, contínua, chamada “magnitude”; e, outra, descontínua, chamada “multitude”. Na multitude, algumas quantidades existem por si mesmas, como os números 1, 2, 3…, enquanto outras existem em relação a outra quantidade, como “duplo”, “quarto”, “metade”… Compreendemos, então, a Aritmética como a arte que estuda a multitude que existe por si só; e, a Música, como a que estuda a multitude em relação a outra quantidade.  Quanto à quantidade contínua, temos a magnitude imóvel estudada na arte da Geometria, e a magnitude móvel, estudada na Astronomia.

No presente artigo introduziremos o desenvolvimento da Arte da Música.

Alegoria da Música, ilustração medieval.

Conta-se que Pitágoras, ao observar um ferreiro trabalhando, reconheceu harmonias familiares nos tons emitidos pelos toques do martelo na bigorna. Ele percebeu que o peso dos martelos era responsável pelas notas que a bigorna emitia. Um martelo que sopesava metade de outro emitia o som de uma nota duas vezes mais alta, ou seja, uma oitava (2:1); um par de martelos que equivalia a (3:2), emitia belas notas 1/5 distantes uma da outra. Assim, Pitágoras, teria descoberto que toda a natureza, todo o universo físico, consiste em harmonias resultantes de números.

Haveria três tipos de Música: Humana, Instrumental e Universal. A “música humana”, segundo Hugo de São Vítor, seria encontrada no corpo, na alma e na conexão entre os dois. (1) Estaria intimamente ligada às virtudes, ao temperamento humano, e à boa modulação da voz. A “música instrumental” seria a encontrada no pulso, nas cordas, no sopro.

Em seus estudos, Pitágoras observou a equivalência fracionária entre as  sete notas musicais e os movimentos dos Astros Celestes: Saturno com a nota Si, Júpiter com , Marte com , o Sol com Mi, Mercúrio com , Vênus com Sol e a Lua com Lá (2). A “música do Universo’ refere-se justamente ao estudo dessa relação.

Boécio afirma que a música “abre caminho ao número e por ele à essência das coisas: a música opera com sons”. O som é resultado de um ímpeto, de um movimento.

“Os sons, com efeito, articulam-se e relacionam-se entre si, como qualquer número com outro número, segundo uma proporção, uma razão, um logos. Conhecer, portanto, esse sistema proporcional é a via de acesso ao conhecimento da essência das coisas; a razão que articula os sons musicais contém a chave da razão que estrutura tanto o homem quanto o universo que o cerca.”

~Boécio, “De Institutiones Musica”. (3)

 

Como todo som é precedido por um movimento, teoricamente, é possível conceber uma “Música do Universo”.

Enquanto Arte Liberal, a Música está intrinsecamente relacionada às virtudes humanas difundindo-se por todos os atos de nossa vida à medida que vivemos segundo os mandamentos de Deus. “O que quer que digamos, que nos mova desde dentro pelo pulsar das veias, está associado pelos ritmos musicais à força da harmonia.” (4)

O estudo das Artes Liberais propiciou uma rica atmosfera intelectual para o desenvolvimento da Música no Cristianismo. Na Idade Média, a Música deixou de ser uma atividade sumamente intelectual, uma mera disciplina matemática na qual poder-se-iam reconhecer os conceitos filosóficos de ordem, proporção e harmonia, para converter-se numa arte com o propósito de elevar o homem ao seu desígnio final: Deus.

Nos primórdios do Cristianismo, desenvolveu-se o Cantochão, um estilo de canto religioso aplicado à prática monofônica, isto é, cantado em uma única voz. Entre as formas de Cantochão historicamente conhecidas, destacam-se a Moçárabe, a Ambrosiana e a Gregoriana. As três se diferenciavam na forma rudimentar de sua notação musical.

O Papa São Gregório, o Grande (590–604) ordenou e padronizou os cânticos disponíveis até aquele momento. Ele decretou que os cânticos da Igreja deveriam ser ordenados e acepilhados, mandou compilar um florilégio de Antifonários e reorganizou a Schola Cantorum, preliminarmente fundada pelo Papa São Silvestre I. São Gregório usou a Música como forma primeira de tocar as almas dos pagãos apresentando-os a Beleza e a Verdade Cristã.

Os neumas foram adicionados como sinais acima dos textos a serem cantados, a fim de bosquejar seu percurso melódico. Nos escritos do monge beneditino Notker Balbulus, ou Notker, o gago (840–912) encontram-se, ao lado dos neumas, sinais peculiares para indicar a progressão cadenciada ou tonal dos cânticos gregorianos. No entanto, ainda não era exequível designar os intervalos e tons entre as notas, mas apenas reproduzir uma sequência melódica muito inexata. Para resolver este problema, o monge beneditino Guido de Arezzo (992 — aprox. 1050) inventou o sistema de linhas, que usamos atualmente, em 1028. Nesse sistema, cada sinal musical ocupa uma posição na pauta consoante a nota desejada. Desta forma, o tom poderia, a partir de então, ser estritamente registrado. Tautocronamente, Guido de Arezzo ideou a solmização, um sistema que usa sílabas para denominar os tons da escala musical (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si). Com esse desígnio, ele criou os nomes pelos quais as notas são conhecidas na atualidade. Os nomes foram retirados das sílabas iniciais de um Hino a São João Batista, chamado Ut queant laxis.

UT queant laxis
REsonare fibris
MIra gestorum
FAmuli tuorum,
SOLve polluti
LAbii reatum,
Sancte Iohannes

A palavra “UT” foi ulteriormente substituída por “Dó”, devido à conveniência sonora deste último se encerrar em uma vogal; e o Si, que não se encontra neste hino, foi acrescentado, tomando-se as iniciais da palavra Sancte e do nome Ioannes.

Após o desenvolvimento da notação musical, obteve-se um expressivo desenvolvimento na Música Cristã. Os teóricos musicais, entre os quais destacamos o bispo Philippe de Vitry, elaboraram com precisão matemática as regras de coordenação do canto com várias vozes diferentes criando, assim, as regras do contraponto. Um compositor de destaque desta época foi Guillaume Machaut (1310-1377), um dignitário eclesiástico em Verdum e Reims, na corte do Rei Carlos V da França. Entre suas obras, destacamos a “Messe du Sacre”, escrita em 1367 para a coroação do Rei Carlos V. Foi este músico também o primeiro a escolher cinco partes fixas da missa para pô-las em sua música: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei.

O Canto Gregoriano sobreleva-se de seus antecessores por ser a forma mais insigne e perfeita de Música Sacra, por possuir em um nível eminente, as particularidades de santidade e delicadeza, próprias da liturgia católica, assim cumprindo seu fim ultimado: a glorificação de Deus e a santificação das almas.

Como ensina o Papa São Pio X:

“Estas qualidades se encontram em grau sumo no canto gregoriano, que é por consequência o canto próprio da Igreja Romana, o único que ela herdou dos antigos Padres, que conservou cuidadosamente no decurso dos séculos em seus códigos litúrgicos e que, como seu, propõe diretamente aos fiéis, o qual estudos recentíssimos restituíram à sua integridade e pureza. […] Uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo.” (5) 

 

 

Tendo isso em mente, arremato este artigo convidando o leitor a contemplar a missa da coroação de Carlos V, composta por Guillaume Machaut (Missa de Notre Dame).


Fontes:
(1) São Vitor, de Hugo. Didascalicon.
(2) Música das Esferas.
(3) Boécio. Sobre el fundamento de la música
(4) Cassiodoro. Institutiones. Introdução às Letras Divinas e Seculares.
(5) MOTU PROPRIO “TRA LE SOLLICITUDE” DO SUMO PONTÍFICE PIO X SOBRE A MÚSICA SACRA.
(6) Carpeaux ,Otto Maria. A história da música.

2 comentários

    • Fernanda em 27 de maio de 2023 às 07:42

    Parabéns pelo artigo Michael! Me ajudou muito a organizar algumas ideias que gostaria de colocar em prática.
    Cheguei a seu artigo através do instagram da sua mãe com quem fiz uma consultoria de homeschooling.
    Que Deus continue guiando os seus passos neste incrível dom do conhecimento! Me impressiona os dons que o Senhor concede a cada pessoa, cada um com uma missão e tudo se completa!
    Obrigada.

    1. Obrigado Fernanda!

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