Comentário ao proêmio da “Eneida”, de Virgílio

Uma obra de literatura clássica tem três características precípuas: (1) Perenidade, (2) Universalidade e (3) Onipresença na Literatura posterior e absorção da Literatura pregressa. Perene e universal porque inobstante dos tempos em que a estudamos, é possível assimilar dessa obra valores universais e virtudes humanas que podemos contrastar com a sociedade atual. Um clássico deve apreender o que de exímio foi produzido antes dela, e tornar-se uma “musa” para obras subsequentes.

Um exemplo de literatura clássica é a epopeia “Eneida” escrita pelo poeta Virgílio. Ele nasceu em Mântua, em 70 a.C, e faleceu em 19 a.C., um período conturbado pela transição da República para o Império Romano. Durante sua educação, ele estudou Medicina e Matemática, além de ter absorvido as grandes obras de literatura de sua época. Virgílio escreveu em sua juventude as obras “Bucólicas” e “Geórgicas”. Mais tarde, escreveu sua obra-prima, a Eneida. Aos 52 anos, faleceu em decorrência de uma febre alta, sem ter a chance de revisar de sua obra.

Públio Virgílio Maro

“Eneida” é um épico que exalta as virtudes do povo romano, simbolizadas no personagem Eneias. É composta em doze cantos em versos hexâmetros. A métrica é heroica, apresenta personagens divinos e humanos, e combina fatos e ficção.

Neste artigo, examinaremos o proêmio da “Eneida”. Um “proêmio”, também chamado de “exórdio”, é um texto introdutório que apresenta a invocação e a proposição do poema. A invocação é um recurso usado pelos poetas para pedir inspiração divina às Musas, filhas de Júpiter e da Memória, para que melhor cantem os grandes feitos narrados no poema. Já a “proposição” é o meio pelo qual o poeta apresenta o tema central do poema.

“As armas, canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia
por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro
e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito
tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno,
guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade
e ao Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina,
dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados.
Musa! recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada;
por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro
tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?
Cabe tão fero rancor no imo peito dos deuses eternos?”

 

No primeiro verso, o autor anuncia a proposição do poema. Virgílio diz que cantará “as armas” e “o varão”. A primeira é uma metonímia para “guerra” e, o segundo, é o nobre herói Eneias, fundador da Itália. O poeta, nesses versos, faz as seguintes referências à obra de Homero: com a expressão “armas”, à “Ilíada”; e, com “o varão”, à Odisseia, sugerindo, então, que Eneias era tão nobre quanto o herói Odisseu. Deste modo, ele ressalta aos leitores o reconhecimento das grandes obras de Homero como inspiração para escrever a “Eneida”.

No segundo verso, para explicar as atribulações por que passará o nobre herói, o poeta personifica o próprio Destino. Na sequência do verso, quando diz “instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias”, o autor usa o recurso chamado “prolepse” – antecipação do tempo – para descrever eventos futuros, como se já tivessem ocorrido, sugerindo que Eneias se casaria com Lavínia, fundando a cidade chamada “Lavínio”.

No terceiro e quarto versos, lemos: “A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno”. Aqui o poeta reforça a proposição “varão”, comparando as dificuldades de Eneias ao navegar desde Troia até a Itália enfrentando as iras de Juno com as dificuldades de Odisseu ao navegar desde Troia até Ítaca enfrentando as iras de Netuno.

No quinto verso, “guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade”, reforça a proposição “armas” ao referir-se as guerras enfrentadas pelo herói, uma referência também à Ilíada. A “Cidade”, neste caso, pode apresentar mais de um sentido: (1) referindo-se a Lavínio, fundada por Eneias, (2) as bases da cidade espiritual fundadora do povo romano e a (3) fundação de Alba Longa pelos descendentes de Eneias, onde nasceria Rômulo e Remo. O tema central, no caso da “Eneida”, é a fundação de uma cidade espiritual – ou seja, a história espiritual que originou o povo romano.

No sexto e sétimo versos, “e ao Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados” – os deuses que Eneias traria em sua viagem até o Lácio, seriam os deuses dos lares, aqueles que auxiliariam ao herói a fundar uma nova “Troia”, neste caso, a Itália. Os “pais albanos primevos”, refere-se aos habitantes primitivos de Alba Longa.

Do oitavo ao décimo primeiro verso, o vate usa o recurso estilístico de “Invocação” as musas. Quem seriam as musas? Filhas de Júpiter e Memória, divindades a quem os poetas pediam auxílio para cantar algo maior que a própria capacidade humana.

As expressões “deidade agravada” e “rainha dos deuses” fazem referência a Juno que, irada por não ter sido escolhida por Páris como a “mais bela das deusas”, grande vingança dirigiu aos troianos. Em “guerreiro tão religioso”, em que o adjetivo é empregado no sentido de “piedoso”, o poeta revela a principal característica moral de Eneias. Mesmo quando um herói enfrenta as iras de um deus, sendo ele piedoso, só por esse motivo os deuses já deveriam aplacar sua ira. Mas, apesar da piedade de Eneias, Juno ainda obstava a vida do nobre herói. Na literatura da Antiguidade, a virtude da piedade era muito rara em um herói. Estudiosos cristãos dos primeiros séculos viam na Eneida um prenúncio das virtudes do Cristianismo, advento que se ocorreria apenas duas décadas após o falecimento de Virgílio.

Enfim, com esta análise reconhecemos no proêmio da “Eneida” as características de uma obra de literatura clássica, no qual o poeta exibe sua absorção da literatura precedente. Quanto à influência posterior, a história nos confirma que a obra de Virgílio foi de grande inspiração para autores como Santo Agostinho, Dante e Camões, tornando-a digna de ser qualificada como um autêntico “clássico”.