As Artes Liberais na arquitetura e decoração da Catedral de Notre-Dame de Chartres

Neste artigo, analisaremos o simbolismo das artes liberais no projeto arquitetônico da Catedral de Notre-Dame de Chartres. Salientaremos de que forma o pensamento dos grandes mestres católicos, reunidos na chamada “Escola de Chartres”, refletiu a produção intelectual de sua época na decoração desta obra monumental.

Catedral de Chartres, fachada oeste e as duas torres.

O bispo Fulberto de Chartres, mestre da “Escola de Chartres”, foi aluno de Gueberto de Aurilac – futuro Papa Silvestre II – em Reims. A seu pedido, foi enviado a Chartres para criar uma escola. Assim como seu mestre, Fulberto foi um dos maiores intelectuais católicos de sua época. Em 1020, logo após um incêndio na igreja local, arquitetou a construção de uma das mais belas catedrais góticas, a Catedral de Chartres, projeto que foi concluído em 1037. Vinte anos mais tarde, ocorreu novo incêndio, sendo finalmente recuperada e integralmente reconstruída em 1252.

A arquitetura, assim como a decoração desta catedral, reflete integralmente o pensamento e a vida intelectual em torno da “Escola de Chartres”, um dos centros intelectuais mais importantes da Europa Ocidental do período. Suas ideias platônicas marcaram o caminho que mais tarde seria seguido por Bernardo de Chartres (chanceler entre 1124 e 1130), Teodorico (chanceler desde 1142), Bernardo Silvestre (ativo na primeira metade do século XII) e Guilherme de Conches (1080-1145). Fulberto é considerado o autor intelectual da planta desta catedral e, possivelmente, também de outras partes da estrutura do edifício, como o labirinto que ornamenta a nave central.

Planta da Catedral de Chartres

Toda a arquitetura da Catedral jubilosamente se ergue para o firmamento, indicando o fim ao qual ela se dirige, isto é, o Céu. As janelas, numerosas e imensas, são fechadas por vitrais que representam os mistérios da religião e a vida dos santos, cuja luz ecoa por todo o santuário como uma luz sobrenatural. Além dos vitrais, há três rosáceas em Chartres. Uma delas está localizada na fachada oeste e mede 12 metros de diâmetro. No seu interior, são representadas cenas do Juízo final. Na fachada norte, há outra de 10,5 metros de diâmetro, dedicada à Maria Santíssima, que aparece ao seu centro segurando o menino Jesus. Ao seu redor, há imagens de anjos, pombas e retratos de passagens do Antigo Testamento. A última rosácea está fixada ao sul, sendo dedicada a Cristo, representado no seu centro com a mão direita erguida, circunvalado por anjos.
Rosácea sul, Catedral de Chartres.
Por dentro e por fora, a catedral é coberta de formidáveis esculturas. Na fachada oeste, veem-se estátuas representando as Sete Artes Liberais, cada uma delas simbolizada por um filósofo antigo rodeado por anjos: Donato ou Priciano (Gramática), Aristóteles (Dialética), Cícero (Retórica), Pitágoras (Aritmética), Boécio (Música), Euclides (Geometria) e Ptolomeu (Astronomia), assim demonstrando a significância das artes liberais para a “Escola de Chartres”. Era Nossa Senhora quem unia a humanidade ao Criador, a Senhora de todas as ciências e filosofias e, a seu serviço, estão as Sete Artes Liberais. O Pórtico Real a representa no centro, ladeada de anjos e, nos arcos superiores, rodeada pelos filósofos da antiguidade e pelas Artes Liberais.

Situado na Nave principal, o labirinto de Chartres é um dos maiores labirintos dentre todas as catedrais existentes, com cerca de 13 metros. O labirinto representava uma peregrinação simbólica que devia ser percorrida a pé ou de joelhos até a roseta central, simbolizando a peregrinação que o homem deve fazer até Cristo.

No dia da festa da Assunção de Nossa Senhora no Calendário Juliano, os raios solares atravessam os vitrais e reproduzem a imagem de Nossa Senhora no coração do labirinto. É a Santíssima Virgem que nos outorga o fio, que nos guia durante as atribulações da vida até nos encontrarmos com seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo. Esse centro é chamado de “Paraíso”, ou também de “Jerusalém”, aplicando-se o termo à Jerusalém celeste e à Jerusalém pela qual os Cruzados combatiam pois, quando impossibilitados de ir à Terra Santa, peregrinos iam à catedral rezar e venerar o manto de Nossa Senhora. Notre-Dame de Chartres foi um dos centros mais antigos onde a devoção mariana se manifestou.

Labirinto da Catedral de Chartres

Para o pensamento medieval, a luz é uma imagem e uma manifestação do sagrado. Em particular, o Pseudo Dionísio, o Areopagita, esforçou-se por conciliar esta filosofia com os conceitos expostos no Evangelho de São João (capítulo 1, versículos 1-4) que identifica Cristo com a luz.

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito.
Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens.”

Através dos escritos de São Dionisio, o Areopagita, os princípios neoplatônicos exerceram enorme influência no pensamento intelectual da cristandade, tanto no oriente, quanto no ocidente. Encontramos evidência deste fato na literatura, na arte e na arquitetura sagrada. A planta da Catedral de Chartres e a disposição dos vitrais foram projetadas para permitir a passagem da luz solar do leste para o oeste: ao amanhecer, os raios solares iluminam os vitrais que contam a história do Gênesis, enquanto se põem nos vitrais que narram os acontecimentos do Apocalipse, relembrando a segunda vinda de Cristo.

É interessante observar que sua estrutura foi construída com um desvio de 47º do eixo leste-oeste. Este desvio foi projetado por dois motivos. Primeiro, para manter a orientação inicial da antiga Cripta de Fulberto. Segundo, para obedecer a uma quantidade astronômica fundamental: a inclinação do eixo de rotação da Terra no ângulo de 23,5°, fazendo com que a trajetória do Sol se desvie em direção ao polo norte no solstício de verão e, no solstício de inverno, em direção ao polo sul. A amplitude angular entre ambos os solstícios é de exatamente 47º. Os mestres de Chartres tinham tal domínio sobre as Artes do Quadrivium que não ignoravam este fato: podemos encontrar essa informação nos “Diálogos de Filosofia”, de Guilherme de Conches.

Como sabemos, as artes do Trivium e do Quadrivium tinham por finalidade a formação completa do ser humano, corpo e alma, com suas faculdades gerais e qualidades individuais. Essas Artes eram ministradas aos discípulos para que pudessem melhor compreender os assuntos mais elevados, como Filosofia e Teologia, por exemplo. Teodorico de Chartres, em seu “Tratado sobre os Seis Dias da Criação”, explicou que a Aritmética, a Música, a Geometria e a Astronomia permitem ao homem conhecer a obra do Criador, e a Teologia deve fazer uso destas Artes para aproximar o homem da Verdade que é próprio Cristo. Guilherme de Conches, na sua “Filosofia do Mundo” afirmou que podemos demonstrar que Deus existe através da ordem diária da Criação. Da mesma forma, Bernardo Silvestre na sua “Cosmografia” salientou que a beleza do mundo deriva da Harmonia (Música) e que isso é agradável aos olhos de Deus. Essas ideias também são expressas no traçado geométrico e harmônico do projeto arquitetônico da Catedral de Chartres.

A arquitetura desta catedral gótica demonstra o pensamento dos grandes mestres de Chartres e a importância que concediam ao estudo das Sete Artes Liberais, principalmente das Artes do Quadrivium, e seu amor incontestável à Virgem Maria e ao Nosso Senhor Jesus Cristo.


Fontes:
Costa, Ricardo da. Entre Chartres e Amiens: A vida cotidiana dos camponeses medievais na Arte (séc.XIII). (https://www.ricardocosta.com/artigo/entre-chartres-e-amiens-vida-cotidiana-dos-camponeses-medievais-na-arte-sec-xiii)
Esquemas dos Vitrais. (https://chartresdotblog.wordpress.com/2018/05/30/esquema-geral-dos-vitrais/)
Imagens da Catedral de Chartres. (https://commons.wikimedia.org/wiki/Cath%C3%A9drale_Notre-Dame_de_Chartres)
Le labyrinthe de la cathédrale de Chartres. (https://www.cathedrale-chartres.org/cathedrale/monument/le-labyrinthe/)
Tomasini, Maria Cecilia. La orientación de la catedral de Chartres y su relación con los solsticios. Una lectura neoplatónica. (https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6204751_)
Tomasini, Maria Cecilia. Las proporciones musicales en la catedral de Chartres. (https://www.academia.edu/6751515/Las_proporciones_musicales_en_la_catedral_de_Chartres)
Woods Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. (https://amzn.to/3WOMWRF)