A tibieza e a neutralidade moral absoluta eram consideradas nóxias na doutrina católica medieval. Vejamos por exemplo, como Dante Alighieri, retrata, em sua obra “A Divina Comédia“, os indivíduos que, em vida, prescindiram da escolha pela promoção do Bem.
No terceiro canto do Inferno, o poeta descreve a chegada do “viajante” (o próprio Dante) ao chamado “vestíbulo do inferno”, ou “ante-inferno”. O vestíbulo destinar-se-ia às almas daqueles infelizes que, por covardia, medo, ou mera tibieza moral, se sotopuseram de fazer tanto o bem quanto o mal, que se omitiram de avocar quaisquer quefazeres para a vida. De fato, Dante abomina de tal forma o homem tépido, que o coloca no vestíbulo do inferno, pois o execrando é tão nauseabundo que não é benemerente nem da lauréola celestina no Paraíso, nem da objurgação eterna na Geena. No vestíbulo, as almas emitem terríveis bramidos e chios, ferretoadas e amofinadas por vespas e moscas, que lhes derramam o sangue dos rostos, que escorre ao chão misturado com suas lágrimas em um mar de lamúrias. No vestíbulo, estariam os anjos que se mantiveram equânimes na disputa entre Deus e Lúcifer, ao lado de todas as almas que se mantiveram moralmente neutras durante a vida — entre essas, Dante insere o Papa Celestino V.
É preciso depreender que, na época em que o poeta escreveu O Inferno, o Papa Celestino V ainda não fora canonizado; e na Europa viviam-se tempos desinquietos, nos quais as notícias eram diversas vezes oriundas de informes segmentários ou boatos do que genuinamente respaldadas em fatos inconcussos. Florença, sua cidade natal, estava politicamente desagregada.
Dante nasceu durante o grande prélio político dos Gibelinos e dos Guelfos na Europa. Os primeiros desejavam uma menor interferência política por parte do Papa, e que os Monarcas Católicos tivessem maior alforria do arbítrio do Santo Padre sobre seus governos. Já o partido dos Guelfos defendia a supremacia do poder Papal, como balança moral e Cristã sobre os reinados e impérios católicos. Dante nasceu em uma família Guelfa e amava sua Igreja; digladiava para que a confluência entre os monarcas e a Igreja fosse afixada.
Possivelmente, o poeta insere o Papa Celestino V no ante-inferno porque ele renunciou ao papado cinco meses após a eleição. Sua renúncia, foi provavelmente devida à pressão política por parte de ambos os partidos, bem como à sua já provecta idade e fragilizada saúde. Dante considerava esse ato um grande erro moral, principalmente para um líder católico: abster-se de promover o Bem Comum, em particular, o de harmonizar o conflito politico na Europa.
“Deus é o Bem supremo de todas as criaturas. Todas foram criadas para Si, e devem retornar ao seu Criador através dos seus atos. […] Para alcançar a vida eterna é necessário ao homem passar por esta vida na Terra, na qual ele não está só. Vive em sociedade e deve preservar, dentro dessa sociedade, o bem comum de todos os seus membros”. (1)
Um segundo motivo para incluir o Papa Celestino V no ante-inferno foi o de que, ao renunciar o cargo, seu sucessor, Bonifácio VIII, tomou decisões políticas que resultaram no sofrido exílio de Dante. O poeta inclui o Papa Celestino V como uma mônita a todos nós: ninguém está eximido da justiça Divina caso se mantenha em estado de exabundante neutralidade ou se abstenha de promover o bem comum. (2)
Se Dante penejasse estes versos na atualidade, quem mais ele incluiria na antecâmara do inferno? Os católicos liberais, com sua neutralidade extrema, são opimos candidatos ao vestíbulo dantesco. Toda a mornidão e a falsa neutralidade descrita pelo autor, reflete o durame do chamado “liberalismo católico”, doutrina morbígena, inicialmente formulada pelo padre Félicité Robert de Lamennais. Segundo o Pe. Augustin Roussel, os católicos liberais não são realmente católicos, nem liberais; são pacifistas ao extremo; acomodatícios com os êmulos da Igreja, mantendo-se pusilanimemente neutros em vez de defendê-la. Não são heréticos, pois não negam com renitência alguma verdade da fé integral e católica, mas o seu amor infrene á independência, à inovação e ao “progresso” da sociedade, leva-os a “amoldar” os dogmas da religião, sempre descrevendo-os de forma ambígua, deixando espaço para múltiplas interpretações, com o desígnio final de adequá-los à era moderna.
Todos os fatos expostos acima nos fazem refletir: será que nós, em nossa vida, também culpavelmente deixamos de propiciar o bem comum? Será que, por comodismo ou covardia, não renunciamos aos dons que Deus nos deu, como o da inteligência e do discernimento, para agir prudentemente e chegar a este fim?
Notas:
(1) http://permanencia.org.br/drupal/node/6215
(2) Celestino percebeu, logo, que não era livre no exercício do seu Ministério, por causa daqueles que, na Cúria, esperavam se beneficiar pela sua pouca experiência de governo. […] «Eu, Papa Celestino V, impelido por legítimas razões, pela humildade e debilidade do meu corpo e pela maldade da Plebe, e com o intuito de retornar à minha tranquilidade perdida, renuncio livre e espontaneamente ao Pontificado, como também ao trono, à dignidade, às honras e ônus, que comporta». Com estas palavras, no dia 13 de dezembro de 1294, Celestino despoja-se dos seus paramentos sagrados e se reveste com o antigo saio.” https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/05/19/s–pedro-celestino-v–papa–pietro-del-murrone-.html
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Excelente texto!
Muito bom! Obrigada por compartilhar, Michael.
Ótimo texto! Parabéns Michael!
[…] Artículo publicado originalmente en: https://vias-classicas.com/michaelhellmann/o-vestibulo-dantesco-e-o-liberalismo-catolico/ […]
[…] primeiro artigo intitula-se “O vestíbulo dantesco e o liberalismo católico” no qual o autor faz um paralelo, comparando os indivíduos que Dante condena ao […]