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De pedras e caminhos

No meio do caminho havia uma pedra,
Nem era tão avantajada:
Chutei-a longe e segui adiante.

No meio do caminho havia outra pedra;
Assaz avantajada, não podia chutá-la:
Saltei-a e segui adiante.

No meio do caminho havia outra pedra;
Assaz avantajada, não podia saltá-la:
Empurrei-a e segui adiante.

No meio do caminho havia outra pedra;
Assaz avantajada, não podia empurrá-la:
Escalei-a e segui adiante.

No meio do caminho havia outra pedra;
Assaz avantajada, não podia escalá-la:
Sob ela escavei um túnel e segui adiante.

No meio do caminho havia outra pedra;
Assaz avantajava-se sob o solo, sob ela não podia escavar um túnel:
Nela própria perfurei um túnel e segui adiante.

No meio do caminho havia outra pedra;
Assaz avantajada, uma montanha, impossível perfurar-lhe um túnel:
Em seu contorno pavimentei uma estrada e segui adiante.

Nenhuma pedra é de tal modo assaz avantajada,
Nenhuma retina tão fatigada,
Para quem deseja seguir adiante.

Necrópole

Num final de tarde de umbrosas nuvens
Contra a frigidez ventosa do crepúsculo,
O viandante arrasta o corpo transido.
Trôpego, marcha; suas botas imprimem
Pegadas tímidas na areia seca.
Treme e geme, o capote mais adeja que o protege
Das álgidas lufadas do Meridião.
Segue-lhe os passos solitários
Na estrada do Abandono
Sua sombra, apenas.

Aureolando seus pés
A poalha rebrilha a réstia do sol ocaso
Que teimosamente inda fulgura
sob opressivas nuvens no horizonte.

O marco carcomido pela Fúria
Do tempo e dos elementos,
da vida e de seus tormentos,
Informa:
“NECRÓPOLE — Bem-vindos os mal-avindos”.

E do seu rosto foge a cor
no instante fatal;
E suspira o seu terror
quando cruza o umbral.

 

A Vida – Guilherme Munhoz Haveroth

Campo aberto, noite estrelada
Põe-se a pensar o velho
Homem.

No grande mundo,
Entre rosas e narcisos,
Veio tu, ó belo lírio, a
Essa dança desgostosa.

Já não sabes ao certo,
Por ter a via deixado,
O que irás ganhar,
A palma da vitória
Ou o fogo da derrota.

Ó lírio, que fazes?
Sonhas ainda com um
Mundo de glória?
Acorda bela flor, estás secando,
Logo te levará o sopro
Do vento.

Acorda agora!
Para de sonhar!
É o tempo oportuno,
É tempo de lutar.

Autor: Guilherme Munhoz Haveroth, 13 anos.

O canto da Forma

A harmonia de curvilíneas
Retas e oblíquos ângulos
Acutângulos
E plúmbeas plumas –
Entalhes engastados em
Diáfanas colunas –
Projetam translúcidas
Feéricas túrgidas umbras
Solares sobre o soalho
Marmóreo, níveo,
Da alma poética.

Encanto e dor,
Melíflua molícia
Vergasta-me a vida!

No esquadro delineio
Em lácteo deleite
Alitero delírios
Rimo os meus rumos.

Porém o propósito,
O úmido sentimento,
O encanto do acorde,
A melíflua melodia;
Nenhures achega
A fátua forma:
Eco oco de um nada que se desfaz.

O Frio, o Quente, o Morno e o Aço

“Mas que dia desprazerosamente frio!”,
Exclama o Duque do Sol Escaldante,
O corpo teso tomado de arrepios,
No alto da Torre do Castelo Flamejante:
“Que seria do mundo sem a carícia
Das brasas celestes que a vida alimenta
Das brisas silvestres que bradam noviças
O poder infinito que os corpos ferventa”.

“Mas que desagradável quentura!”,
Sussurra o Duque do Frio Glacial,
O corpo ressudado em cada comissura,
Nos subterrâneos do Castelo Invernal:
“Ah, que os glaciares redentores
Se desprendessem do frígido Sul,
E refrescassem estes calores,
Devolvendo ao mundo o seu azul!”

“Mas que dia delicioso!”,
Gargalha a Duquesa do Aço,
No corpo um frêmito voluptuoso
Enquanto brada agitando os braços:
“No calor que o metal liquefaz,
Ou no frio que o enrijece,
O Aço secciona a Paz,
E de sangue terei a messe!”

“Eis, enfim, um dia perfeito!”,
Proclama o rei na Sala do Trono,
No majestático direito,
De todos induzir ao Sono:
“Nem quente, nem frio: morno!
Em minhas terras subtropicais!
Governo a todos em meu entorno!
E desta vida nada quero mais!”

E assim se eleva no horizonte
Estrela rubra, fulgurante –
Prepara os remos, ó Caronte:
Pois a guerra chegará num instante!

Balada do Velho Pinheiro

Soerguendo-se no verde caos da floresta
O imponente tronco carcomido,
Eloquente testemunho da glória de tempos esquecidos,
Do velho pinheiro entoa o que de voz ainda lhe resta.

Em tom terrível o tétrico tronco admoesta
Os pecados que se alastram nos ganidos
Dos seres que em passos desmedidos
Dançam a seus pés a vida em festa.

Dos ramos ancestrais inda descaem pinhas
Que no solo árido rochoso estalam;
Alguns, aqui e ali, a esterilidade abalam,
E germinam, e brotam, e crescem, vencendo rinhas.

Nenhum tão profundamente se enraíza,
Porém, como o velho pinheiro:
Das raízes fazem pernas e por quaisquer dinheiros
Logo largam o solo e seguem enganosas brisas.

De suas pernas fazem naus e vão singrar as vagas fúrias
Deslumbrados com a leveza em que flutuam:
Até que os vagos movimentos que insinuam
Naufragam ambições, cobiças e luxúrias.

Mas não aprendem da nefasta experiência
Os deveres, os cuidados, o respeito venerando,
Que mesmo em dias de aprazíveis ventos brandos,
Exige o mar dos que lhe têm Ciência.

Não! Ao velho pinheiro toda a culpa cabe
De cada sofrência e desdita,
De toda dor que palpita,
No que ignora o que sabe.

Arremedando medrosamente o matusalênico mestre
Os pinheirinhos verdolengos
Germinam mentirinhas molengas
E não dizem coisa que preste.

A voz do velho pinheiro na floresta tonitrua,
Troa, troveja, atormenta;
E os pinheirinhos não aguentam,
O desfile de sua burrice, à vista de todos, nua!

Conjuram nuvens de cupins,
Esquadrilhas de pica-paus,
Gralhas e bacuraus,
E criaturas afins.

O velho pinheiro, sobranceiro, de tudo ri-se faceiro,
A tudo afasta sem recato:
Tudo se vai na corrente do regato
E ele segue, invicto, no topo do outeiro.

Jazz

Em ritmo quinário
Melódico trago
Reverso salário
Anódino pago.

Um passo de cada vez
Septualizo o compasso
Dia após dia do mês
De que me desembaraço.

Não busque
Regularidade
Em ver-
Sos tercinos:
É um jazz
Que surpreendentemente
Des-
ce das colinas
Ines-
peradamente e finaliza num
Repente.

A pedra e a fenda

Mais pressinto do que entendo
A fenda de tolices
Que cinge a religiosidade
Como resguardo de nociva carolice.
 
Uma e outra aparentadas no temor
de Deus, a primeira é grata refém
Da Bondade Soberana.
Na segunda intuo a ausência desse Amor
Infinito cuja coroa usurpa um supersticioso
Horror a todo Bem.
 
No solo ressequido do coração em pânico
Enraizam-se,
Germinam,
Brotam,
Defluem tortuosas frondes
Embaraçadas de angústias daninhas
E de ódios trepadeiros.
 
Do religioso, sobre a outra face
Da moeda que se dá ao inimigo,
Cumulam-se o
Ouro, a
Prata, as
Pedras inquebráveis,
Sobre quem se funda a nossa Igreja.

João Batista

Largai-me na masmorra mais profunda, nas entranhas do planeta,
E minha voz penetrará vossos ouvidos
Sussurrante em cada brisa. Serei ouvido
No farfalhar das folhas de papel em que a tinta de vossa caneta
Registrará minha sentença.

Cortai minha cabeça e servi-a a vossa amante num prato:
Ouvir-me-eis no zumbido dos insetos,
No borbulhar do espumante premiado, infecto,
No roçar dos talheres de prata
Na carne da lagosta, rosácea e densa.

Sepultai meu corpo e, nas frinchas das paredes, escutai:
Minha língua incorpórea ainda fala, barítona,
De vossas culpas e sofismas, epítome,
De vossas blasfêmias, ai
De vós, raça de víboras – eis a cruz de vossa descrença!

Nas dobras de vossas togas, nos fios de vossas barbas,
Nos nós de vossas gravatas,
Nas mesas de aristocratas,
Nas camas que vos enfartam,
Minha voz dirá – Culpado! – até que as almas se convençam!

A mais jovem das deusas pagãs

No tempo em que a eternidade no berço inda vagia
A Fortuna, essa bruxa rancorosa,
No jardim das rosas da Vida
Alcovitou o amor do Enfado com a Vacuidade.

Desse encontro fátuo de uma noite sem amor
De prazer e desprezo,
Nasce órfã de si mesma uma bela nova deusa.

Faminta pelo amor do pai, eterno insatisfeito,
Multiplica as faces, cores, peles e cabelos;
Vestes e calçados e ornamentos a cada olhar transmudam-se;
Sua voz, Música de mil ritmos, melodias e harmonias,
Mal se ouve, já ao vento se desfaz.

Seus lares estão em toda parte,
Do litorais às montanhas, das ilhas aos continentes,
Das florestas aos desertos, dos pântanos às savanas –
E em nenhum deles ela mora,
Pois ao relento, catatônica, devaneia e sonha,
E arquiteta o próximo projeto.

Seus pés navegam pelos ventos
Suspensa pelas asas da Insegurança.
Seus amores não perduram por mais de um segundo…
Seus beijos roçam sem tocar os pretendentes
Provocando insensíveis arrepios de desejo irrefreável.

Correndo, voando, mais célere do que o Amor das
Multidões que se arrastam a beijar seus passos,
Ela, muda, sorri, e transmuda-se novamente,
E ainda mais uma vez.

Feiticeira cruel, dominadora impiedosa,
A mais jovem das deusas pagãs
– Seu nome? Moda! –
Subjuga, escraviza, tortura, domina,
Mas, enlouquecida, não conquista
Sequer um sorriso,
Ou um gesto de carinho,
De seu pai.

Poemas