Escrevo um verso:
“– Que escondiam-se atrás do cipreste tristonho…”
A fessorinha retruca:
– Tá errado! Deveria ser próclise: “Que se escondiam…”
Esclareço:
– É de Castro Alves.
Ela redargui:
– É genial, brilhante então!
E assim se faz um país aristocoprofagocrático
Democracia do demo, sem demos!
nov 06
Aristocoprofagocracia
out 23
E.D.A.I. (Elogio D’Artificial Inteligência)
A Gregório de Matos
Co’o implante dum chip no SNC
Promete-nos, divina intrépida, a Ciência
Todos dotar de sobre-humana inteligência
Até os mais burros de nós, veja você!
A moçoila que requebra toda faceira
E o rapaz que por ela baba boquiaberto
A Ciência nos jura fazer mais espertos
E que jamais dirão de novo tanta asneira.
O eleitor que hoje tão facilmente se ilude
Por tão parvo crê em promessas idiotas
Votará nunca mais em malandros ignotos
E assim conquistará casa, emprego e saúde.
Co’a ascensão da milagrosa Tecnologia
Engenheiros aprenderão a Tabuada
Dos enfermeiros não doerá a agulhada
Dos cômicos quadruplicará a picardia.
Mas previsível efeito colateral
Aguarda a Humanidade bem ali na esquina
Ou ingênuo pensas que quem tanto maquina
Não pretende ensinar-te uma lição moral?
Inteligência made in China insuspeita
Adquirida em magazine em 10 prestações
Com juros escorchantes de estourar cartões
E um ano de garantia contra defeitos.
No dia em que não mais funcionar, não reclame
Se a assistência técnica não tiver mais peças:
Da cara inteligência te despeças
Ou dê um jeito em casa com cuspe e arame!
Captura de tela da notícia que inspirou as quadrinhas acima, com link para o original:
out 18
Trigais
A Alphonsus de Guimaraens
Ó trigais das nuvens castas
Em que cintilam meus amores:
Sua sombra ao solo me devasta
Banha-me os dias em terrores;
Vontade minha que se empasta
Fundindo em cinzas minhas cores:
Meu peito implora e grita um “Basta!
Não mais sonhos sem sabores!”
Mas das castas nuvens os trigais
Que em terrores banham-me o dia
Ignoram altivos os meus ais,
Empastam-me o choro nas cores do solo;
Fundem terrores; com lâmina fria
Retalham a esperança que trago no colo.
out 12
Poeta Modernista
ago 25
Quem és tu?
Meus passos hesitantes aproximam-me
Do Palácio das Dores, onde um pleito
Insano a que as Parcas obrigam-me
Levarei ao Mestre do Direito.
A cada curva da estrada lamacenta
Aloja-se uma besta em sentinela,
Guardiã dos Portões do Cumprimento,
Brandindo uma exigência de chancela.
“Quem és tu?”, interroga-me a Górgona
A primeira de longa fila,
Que trincando seus dentes isógonos,
O ódio ao visitante sibila.
“Sou Ninguém”, respondo cabisbaixo,
“Ninguém que importe, apenas um velho,
Em que lugar nenhum me encaixo,
Teu mero reflexo no espelho”.
Em seguida, interpela-me o Cíclope,
A pança cúpida por carne crua,
“Quem és tu?”, ruge e estreita o olho míope,
Desde alturas que a coragem acua.
“Sou Ninguém”, assevero, não reluto:
“Sou o Ninguém que navega por maus ventos,
O Ninguém cuja voz ninguém escuta,
O Ninguém que ignora os elementos,
O Ninguém que no ventre das ovelhas,
Despreza os que ostentam sinecuras,
E que com a diligência das abelhas,
O olho do Cíclope perfura”.
À entrada do Palácio sorri a esfinge
O enigma que me devora,
O sangue em suas presas tinge
De terror o meu semblante agora.
“Quem és tu”, desafia-me o monstro.
“Sou Ninguém”, gaguejante, replico,
“Um Ninguém que, como logo o demonstro,
Teus enigmas não devoro, decifro-os!”
Mais além vem-me o Leão de Nemeia
De arregaçadas babujantes fauces
Fita-me qual Pigmalião sua Galateia
Expectante de um passo meu em falso.
“Quem és tu?”, brame a insaciável fera.
“Sou Ninguém”, balbucio um acalanto,
“Sou Ninguém que tua cabeça fere,
O Ninguém que tua pele veste em manto”.
Enfim diante do trono do Leviatã,
A bocarra deglutidora de vidas;
A seus pés os ossos dos que, no afã
De exigir o cumprimento de seus pedidos,
Experimentaram a sorte malsã,
De morte em seu ventre digeridos.
Nada me pergunta, nada quer ouvir,
Gargalha, debocha, escarnece:
“Idiota! Tudo o que quero saber de ti,
É teu nome, R.G., CPF!
Volta agora outro dia –
Que já se encerrou o expediente –
Nalgum momento entre o meio-dia
E a hora do sol poente”.
ago 04
Jazz
Em ritmo quinário
Melódico trago
Reverso salário
Anódino pago.
Um passo de cada vez
Septualizo o compasso
Dia após dia do mês
De que me desembaraço.
Não busque
Regularidade
Em ver-
Sos tercinos:
É um jazz
Que surpreendentemente
Des-
ce das colinas
Ines-
peradamente e finaliza num
Repente.
jul 29
A pedra e a fenda
jul 18
Sorte e Providência
Digo “boa sorte”,
Intento indiferença
Pois, Cristão, não sei a sorte:
Só a Providência.
Versão em espanhol por Catherine Espinoza:
Digo “buena suerte”,
Intento indiferencia
Ya que, Cristiano, no sé la suerte:
Sólo la Providencia.
jul 17
A Slumber Did My Spirit Seal (tradução) – William Wordsworth
A slumber did my spirit seal |
Um sono fez-me d’alma um selo |
A slumber did my spirit seal; I had no human fears: She seemed a thing that could not feel The touch of earthly years. |
Um sono fez-me d’alma um selo; Humano destemor: Ela como que perdera o zelo Do toque dos anos em flor. |
No motion has she now, no force; She neither hears nor sees; Rolled round in earth’s diurnal course, With rocks, and stones, and trees. |
Nem meneio lhe resta, nenhum recurso; Ela nem ouve nem vê; Rotante em terrestre diurno percurso, As pedras e plantas não lê. |
jun 16
Aristodemo
A tua mentalidade aristocrática
Faz-te julgar-te acima de toda crítica,
Mas se és raio da roda da política
Sob ofensas pagarás por tuas práticas.
Sou cidadão; minha raiva é matemática;
Pago impostos, sigo leis; a rosa mística
De tuas decisões – obras cabalísticas –
Desperta a ira, logo, xingo-a, enfático!
Na democracia, não há cidadão
Especial; todo cargo, um favor
Temporário, precário; um galardão
Perdido nos ventos que mudam o humor
Expresso no feroz, cruel palavrão
Que te dirige o soberano eleitor!